Abrindo a caixa preta elétrica

Abrindo a caixa preta elétrica

O sistema elétrico vive à beira de um colapso financeiro. Custos bilionários permanecem represados na contabilidade das concessionárias na expectativa de um ajuste que viabilize seu repasse para o Tesouro e/ou para os consumidores. Dois problemas interligados estão na raiz dessa situação: (i) a gestão centralizada da operação econômica do parque gerador em modelos computacionais e (ii) a divisão dos consumidores em livres e cativos (das distribuidoras).

Os consumidores livres têm liberdade para contratar o preço de seu suprimento de energia diretamente com os geradores. Contrariamente, os cativos devem aceitar os preços contratados pelas concessionárias em leilões de energia promovidos pelo governo com o objetivo de garantir o suprimento de energia do país. Como os consumidores livres conseguem condições econômicas mais favoráveis que as ofertadas nos leilões, essa segmentação do mercado atacadista de energia penaliza os cativos. Essa situação tem induzido estes consumidores a migrarem para o mercado livre.

Por seu lado, os modelos computacionais têm a pretensão de identificar a quantidade adequada e o preço ótimo (sic) da energia para atender ao mercado consumidor. Alimentados com expectativas burocráticas para variáveis físicas e econômicas (pluviometria, demanda de energia etc), os modelos definem o uso da água dos reservatórios hidrelétricos na geração de eletricidade. Na prática, os geradores delegam aos modelos a decisão tanto do preço quanto da quantidade de energia ofertada por sua central ao mercado consumidor.

Como compensação para sua renúncia ao direito de decidir as condições de sua oferta de energia, os geradores têm assegurado, nos contratos de concessão, a comercialização de uma quantidade anual pré-fixada da energia total ofertada pelo parque gerador, independentemente da quantidade efetivamente produzida por suas centrais. Vale dizer, a União garante aos geradores um fluxo anual de energia para ser comercializada no mercado elétrico, a despeito da evolução das condições físicas e econômicas do sistema elétrico brasileiro. Como a maior parte da energia dos geradores é comercializada em contratos de longo prazo, essa regulação garante um fluxo de receita anual para os geradores.

Ao remover o risco de mercado dos geradores, essa regulação tornou muito atraente o investimento na expansão do parque gerador, o que explica o incremento contínuo da capacidade instalada desse parque, apesar da relativa estagnação do consumo de energia. No entanto, essa regulação tem outros efeitos econômicos relevantes.

Dadas as inevitáveis discrepâncias entre as expectativas burocráticas que alimentam os modelos e o comportamento real do mercado, os preços ótimos que brotam dos modelos deixam de equilibrar as ofertas pré-definidas dos geradores nos contratos de concessão com as determinadas pelos modelos. Para remediar esses desequilíbrios, foram introduzidos diversos puxadinhos no regime regulamentar (bandeiras tarifárias, energia de reserva, “generation scaling factor” etc) que procuram preservar os fluxos financeiros entre os agentes setoriais.

Na situação atual, as tarifas são decididas com base em custos passados; não sinalizam custos futuros

A migração de consumidores do mercado cativo para o livre vem agravando a situação financeira das concessionárias. Essa trajetória é insustentável. Dadas as condições das contas públicas, não parece razoável que o Tesouro aceite absorver repasses crescentes de custos das concessionárias. Por outro lado, um tarifaço elétrico abortará a retomada do crescimento econômico. Cedo ou tarde a regulação setorial terá que ser revista. A recontratação da energia de Itaipu sinaliza a urgência imperiosa dessa revisão.

O governo terá que enfrentar um dilema. Preservar a gestão centralizada da operação econômica do parque gerador em modelos computacionais ou delegar as decisões de oferta e demanda de energia para os agentes do mercado?

Na situação atual, as tarifas são decididas com base em custos passados; elas não sinalizam custos futuros. Mais ainda, uma parcela dos consumidores paga preço acima de seu custo, subsidiando outros que pagam abaixo de seu custo de suprimento. O principal benefício dessa situação é que as tarifas elétricas garantem a qualidade e a confiabilidade do suprimento. Contudo, esse regime tarifário é adotado “para facilitar a vida dos gestores do sistema ao invés de economizar o dinheiro dos consumidores” (Alfred Kahn).

A drástica redução no custo de coleta e processamento de informações viabilizou a identificação dos custos de suprimento de cada consumidor. Ela também permitiu avanços na gestão de expectativas, sempre que informações suficientes (planos de expansão, andamento dos projetos etc.) sejam disponibilizadas para os agentes. Nesse novo contexto, o suprimento elétrico pode ser comercializado em pequenos intervalos de tempo, bastando que os consumidores disponham de medidores de consumo adequados. Ou seja, o regime tarifário com base em custos médios passados tornou-se obsoleto.

A liberalização do mercado atacadista traz o benefício da redução de consumos subsidiados, porém ela expõe os agentes ao risco das flutuações do custo do suprimento da energia. Os erros de previsão têm que ser negociados no mercado de curto prazo (spot), que é naturalmente volátil. Nesse ambiente, a credibilidade do preço spot é pilar fundamental do funcionamento do mercado. Para garantir essa credibilidade, é indispensável que esse preço seja determinado com base nas expectativas dos agentes do mercado.

Em síntese, o primeiro encaminhamento remove o risco de mercado dos investidores, porém exige que o Tesouro e/ou os consumidores arquem com os custos dos equívocos dos modelos computacionais. O segundo obriga os investidores a analisarem criteriosamente os riscos de seus investimentos, porém oferece sinais de mercado adequados para as decisões dos agentes.

Ambas as soluções exigirão a renegociação dos inúmeros contratos de concessão outorgados pela União nos diversos leilões de energia promovidos ao longo das últimas décadas. Essa não será uma tarefa simples. E ela será tanto mais complexa quanto mais tarde o Ministério de Minas e Energia se debruçar sobre o tema.