Agenda Regulatória para contração de termelétricas

Agenda Regulatória para contração de termelétricas

Usinas totalmente flexíveis por disponibilidade ou não: um falso dilema?
A característica mais marcante dos mercados de serviços de eletricidade é a contínua e permanente necessidade de se manter um perfeito balanço entre a oferta e a carga por energia elétrica. No entanto, tanto a disponibilidade de geração quanto o consumo por eletricidade observam sazonalidades não coincidentes, além de serem fortemente impactadas por variáveis estocásticas não perfeitamente correlacionadas, como a temperatura, a insolação, os regimes de ventos e de chuva. Sendo assim, apesar da ocorrência de alguma complementaridade entre as diferentes sazonalidades observadas, apenas a sorte asseguraria a equivalência necessária entre oferta e demanda.
Por essa razão, existe um conjunto de atributos, como reserva de capacidade, tanto em termos de potência quanto de energia, que precisam estar fisicamente presentes no sistema elétrico. A reserva de capacidade provida por geradores termelétricos, mais especificamente, por oferecem maior independência relativa às variáveis climáticas, tem sido considerada pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) como necessárias para assegurar a segurança e a estabilidade do balanço entre carga e oferta de energia elétrica no curto prazo – ver Consulta Pública no 61, de 24 de outubro de 2018.
A própria oferta de capacidade termelétrica, todavia, quando olhada mais de perto, pode ser suprida por diversas soluções tecnológicas que traduzem um trade-off entre custos fixos e variáveis, além de maior ou menor flexibilidade operativa. É possível, por exemplo dispor de geração termelétrica a partir de turbinas aeroderivadas com grande flexibilidade e uma relação entre custos fixos e variáveis em que os primeiros são menos significativos do que os segundos. Por outro lado, a geração termelétrica a partir de ciclo fechado ou combinado oferecem uma flexibilidade um pouco menor e uma relação inversa na significância dos custos fixos e variáveis.
Tais opções tecnológicas, entretanto, não configuram um dilema impondo a escolha da tecnologia mais indicada para atuar na ponta e na base da geração, como aparentemente se pode deduzir do fato de que a minuta de portaria disponibilizada pelo MME no âmbito da Consulta Público no 61 propor a inabilitação de empreendimentos cuja a inflexibilidade operativa anual seja superior a zero. A EPE, por sua vez, por meio da Nota Técnica no EPE-DEE-RE-054/2018-r2, que também compõe a documentação disponibilizada pela referida Consulta Pública, defende que é necessária a contratação de termelétricas com baixo custo fixo e flexibilidade operativa plena, sugerindo a predominância da opção por usinas termelétricas em ciclo aberto.
De fato, o referido dilema não existe. Primeiro, o que se deseja contratar é um serviço que será desempenhado por meio da inclusão de nova capacidade em um sistema já existente, o que significa que seu desempenho será afetado pelos atributos das demais usinas, existentes ou a serem contratadas no mesmo leilão. Não há razão para que cada nova usina seja capaz de complementar a curva de demanda residual sem considerar os demais geradores do sistema. Na verdade, a nova reserva de capacidade pode ser despachada na carga, alta, média ou baixa, a depender da variabilidade do Custo Marginal de Operação (CMO) e da disponibilidade eólica ou solar, por exemplo. Além disso, uma entrada e saída muito frequente de geração termelétrica é ineficiente do ponto de vista energético e aumenta significativamente o desgaste das máquinas, de modo que se pode esperar que o despacho real privilegie ajustes rápidos com base em hidrelétricas, mesmo que implique a manutenção de um maior despacho termelétrico para assegurar capacidade de manobra nas redes de transmissão.
Assim, a complementação termelétrica deve ser examinada como um hedging para cobrir a eventual redução da oferta de energia, particularmente, das fontes renováveis face à carga do sistema. E, consequentemente, deve ser precificada como um prêmio de risco. E aqui vale a máxima: maior a compreensão do risco incorrido, menor o prêmio necessário para cobri-lo. Logo, existe ampla oportunidade para redução do prêmio de risco vinculado ao despacho termelétrico no caso da identificação antecipada dos blocos de energia (carga × duração) que conformam a curva de duração residual a ser atendida pelas termelétricas. A curva de duração residual é obtida subtraindo-se da curva de duração a contribuição das demais fontes.
A estratégia de se contratar a geração termelétrica totalmente flexível traduz um comportamento exacerbado de aversão ao risco. A segurança ilusória de buscar um hedging completo, cobrindo todas as eventualidades, conduz necessariamente a um prêmio de risco mais elevado do que o necessário. A leniência na compreensão dos riscos que de fato devem ser cobertos pela geração termelétrica custa caro, tanto do ponto de vista econômico quanto ambiental. Aprimorar as alternativas para gerenciá-los é tarefa relevante e oportuna.
Até um passado não muito distante, o parque gerador brasileiro apresentava fortíssima dominância hidrelétrica, com a geração termelétrica diminuta em termos de carga, e eventual em termos de duração. A condição operativa do sistema oscilava com as termelétricas desligadas na maior parte do tempo, sendo mesmo comum a ocorrência de vertimentos de energia pelas hidrelétricas. Para tanto, importava contar de alguma capacidade termelétrica à disposição do despacho. Naquelas circunstâncias, contratar termelétricas totalmente flexíveis por disponibilidade seria a conduta adequada.
Porém, a condição operativa do sistema se modificou acentuadamente nas últimas duas décadas. Restrições ambientais e limitações na disponibilidade de aproveitamentos realizáveis contribuíram para o decréscimo da participação relativa da geração hidrelétrica. A matriz elétrica foi se diversificando com ampliação da parcela das outras fontes renováveis, tais como energia eólica, biomassa e solar. Concomitantemente, a ocorrência de cenários hidrológicos desfavoráveis, quando não severos, tem requerido uma complementação termelétrica mais frequente e duradoura. E nestas circunstâncias, a contratação unicamente de geração termelétrica por disponibilidade não pode ser a alternativa mais apropriada, por admitir um nível de incerteza expressivamente superior ao real, como se nada fosse conhecido quanto à ocasião e a duração da complementação termelétrica requerida.
A análise da realização da referida complementação ao longo da última década sugere algum padrão exibido na curva de carga residual e na sua sazonalidade. A primeira indicando os blocos de energia (carga × duração) requeridos, a segunda apontando ocasiões quando a necessidade de complementação é mais premente. Aqui uma observação é oportuna. Enquanto a natureza contribui decisivamente para conformar os blocos de energia produzíveis pelas fontes renováveis, no caso da geração termelétrica o decisor tem possibilidades ampliadas para defini-los, tanto em termos de carga quanto de duração.
Antever a curva de carga residual a ser complementada pelo despacho termelétrico já reduz significativamente a incerteza futura. A estruturação de leilões por quantidade para termelétricas, cujos produtos fossem blocos de energia com carga e duração especificados, permite uma seleção mais eficiente de tecnologias de geração, em relação ao trade-off dos custos fixos e variáveis, e também uma mitigação dos riscos inerentes a contratação dos combustíveis, especialmente se quisermos viabilizar a contração de gás natural, sem necessariamente reduzir a flexibilidade de despacho operativa. As incertezas quanto ao momento de despacho e quanto à quantidade de blocos de energia a ser requerida não são idênticas e a segunda pode ser mais fiacilmente mitigada por meio de cláusulas contratuais específicas.
As curvas de triagem, não apenas indicariam termelétricas aeroderivadas para os blocos de curta duração e ciclos fechados convencionais ou combinados para blocos de longa duração, como apontariam zonas de indiferença. Não menos relevante, a antevisão da duração dos blocos de energia contratados e das tecnologias selecionadas permite uma negociação antecipada mais informada do combustível requerido, o que é crucial no caso do gás natural.
A relação básica entre energia e potência, representada na curva de carga (sistema ou subsistema), é frequentemente sintetizada, com alguma redução de informação, na curva de duração, a qual indica a carga (MW) como uma função da duração (h). Então a energia (MWh) corresponde à área abaixo da curva de duração e pode ser vista como a integral de Lebesgue da curva de carga. Esta área, por sua vez, pode ser conformada em blocos de energia (carga x duração). Isso conduz à questão de como estimar a curva de duração futura (sistema ou subsistema). Aqui existem duas possibilidades: 1) as distribuidoras informam suas curvas de duração, ou apenas potência e energia; 2) as distribuidoras continuam informando apenas energia, com a potência sendo estimada pelo ONS ou EPE, baseando-se nas curvas de duração observadas.
Da curva de duração (sistema ou subsistema) deve-se passar à curva de duração residual a ser atendida pela complementação termelétrica, que pode ser obtida subtraindo-se da curva de duração a contribuição das demais fontes. Assinale-se que a curva de duração residual será uma função estocástica, pois depende da realização futura da geração das fontes renováveis. Adicionalmente, deve-se explorar a possibilidade de intercâmbios de potência e energia nas estimativas para subsistemas. Tratando-se de uma função estocástica, as curvas de duração residuais podem ser estimadas com diversas probabilidades de ocorrência através de simulações de cenários hidrológico, regimes de ventos e de insolação. O conceito de Value at Risk (VaR) permite identificar a curva de duração (sistema ou subsistema) para um determinado nível de risco. E a curva de duração residual assim determinada é a informação crucial para definir as necessidades de contratação para potência e energia.
Porém a curva de duração residual revela mais informação do que apenas a necessidade complementar de potência e energia. Ela também informa a duração correspondente aos blocos de energia para carga de ponta, média e base. Isto sendo fundamental para a seleção das tecnologias de geração termelétrica mais eficientes para cada caso. Além de melhor instruir a contratação de combustível, que também seriam expresso em termos de bloco (vazão × duração).
Usar a curva de duração residual para contratar potência e energia proveniente de complementação termelétrica oferece uma solução direta e simples para conciliação dos respectivos montantes. Cada bloco da curva de duração residual especifica um montante de energia: carga × duração. Isto permite definir para cada certame diversos produtos, cada qual com duração especificada. Os proponentes geradores disputam a carga de cada produto, conhecendo antecipadamente sua duração. Isto lhes possibilita selecionar com eficiência a tecnologia de geração termelétrica mais competitiva para cada produto. Instituindo-se este procedimento, uma vez atendida a carga (potência) de cada bloco, também estaria atendido, por construção, o montante de energia correspondente ao bloco. Sob o aspecto jurídico, usar a curva de duração residual para contratar potência e energia proveniente de complementação termelétrica também oferece uma solução mais direta quanto à definição do objeto contratual, dos sujeitos do contrato e das obrigações a eles atreladas, o que aumenta a perspectiva de exequibilidade do contrato e, consequentemente, a segurança jurídica das obrigações que dele derivam.
Com base na análise das curvas de duração residual (carga × duração) e de triagem (custo × duração), o ONS poderá determinar, para cada região geoelétrica, quais os atributos necessários para a operação do sistema que, por sua vez, deverão ser refletidos contratualmente na forma de obrigações assessórias nos contratos por quantidade ou por disponibilidade, conforme a maior ou menor certeza sobre a duração agregada dos despachos esperados. Destaca-se apenas que não existe razão para que tais contratos sejam específicos para fontes energéticas, tipos de usinas ou mesmo para o lado da oferta, uma vez que um portfólio de diferentes fontes energéticas e de alternativas de balanço com base em resposta da demanda podem se revelar alternativas mais eficazes ou de menor custo, ainda que tal característica possa trazer alguns desafios jurídicos. Isso porque quanto mais específico for o objeto do contrato, menos complexa será a definição das partes contratadas e das obrigações (principais e acessórias) cabíveis a cada uma das partes e, eventualmente, a terceiros.
Para tanto, é importante que o governo não adote ex-ante premissas muito fortes que venham a inibir a contratação de diferentes tecnologias de geração ou de resposta da demanda. É importante que haja uma boa representação dos atributos desejados em cada contrato e região geoelétrica, mas é provável que as soluções ótimas sejam distintas em cada caso, submercado ou momento de contratação. Assim, pode ser temerário, por exemplo, alijar da competição as usinas com ciclo combinado ou a necessidade de despacho antecipado. Especialmente, pelo fato de que é possível combinar contrato de take-or-pay de combustível com take-or-pay (contrato por quantidade) de geração sem perder flexibilidade operativa – a depender do cenário traçado pela curva de duração residual. Seria possível, inclusive, que as cláusulas de quantidade de energia tivessem horizontes plurianuais, para reduzir o custo de arrependimento do comprador. Outras pequenas adequações também poderiam ser tentadas para reduzir os riscos de ambas as partes, como no caso do cálculo do Custo Variável Unitário (CVU) das usinas termelétricas que poderia ter a granularidade reduzida de um mês para uma semana.
O acompanhamento das discussões no âmbito do setor elétrico ensejam a relevância e oportunidade de aperfeiçoamento do seu arcabouço regulatório. O decréscimo relativo da geração hidrelétrica com reservatório de regulação e o concomitante acréscimo relativo da geração eólica e solar ampliam a necessidade de complementação térmica, tanto em termos de potência quanto de energia. Aqui três problemas devem ser evitados: 1) operar por longos períodos termelétricas de baixo custo fixo e elevado custo variável; 2) operar por curtos períodos termelétricas de elevado custo fixo e baixo custo variável; 3) intensificar, ainda mais, a judicialização no âmbito do SEB em razão da eventual inexequibilidade de contratos. O exame conjugado das curvas de duração residual e de triagem contribuem expressivamente para: 1) quantificar a complementação termelétrica em termos de potência e energia; 2) identificar os produtos procurados nos leilões; 3) selecionar as tecnologias termelétricas mais eficientes economicamente; 4) conciliar os requisitos contratados de energia e potência; 5) conciliar a venda de energia elétrica com a compra de combustível; 6) trazer maior exequibilidade e segurança jurídica para os contratos de potência e energia proveniente de complementação termelétrica. Tudo de forma muito clara e simples.