Caminhos e perspectivas no horizonte dos consumidores de energia

Caminhos e perspectivas no horizonte dos consumidores de energia

Possibilidade de participação em decisões e PL da Portabilidade trazem ânimo. GD mostra um novo tipo de consumidor de energia.

Acostumado a não ser protagonista nas decisões do setor elétrico, o consumidor final de energia começa a ter um novo papel desenhado para si. Conhecido pela relação por vezes conturbada com as concessionárias e as queixas sobre o fornecimento, os avanços tecnológicos e regulatórios que estão se aproximando no Brasil trazem luz sobre os desafios que os consumidores de energia enfrentarão no futuro. A digitalização de redes, que vai desencadear o no smart grids já começa acontecer, é apenas uma dessas etapas em que a classe será uma das protagonistas. Mais desafios aparecerão no espectro do âmbito regulatório.

Querendo estar cada vez mais perto do consumidor, a Agência Nacional de Energia Elétrica instalou no fim do mês de junho a Comissão de Apoio ao Processo Regulatório Sob a Perspectiva do Consumidor. A comissão tem o objetivo de garantir a avaliação da visão do consumidor nos debates e em análises de regulamentação. Ela deverá questionar as regras da Aneel e apresentar contribuições. Formada por instituições de vários segmentos, a meta é ter a opinião das classes de consumo antes da tomada de decisão. A comissão vai emitir análises opinativas sobre propostas de regulamentos que estiverem em processos com participação pública.

A criação da comissão está prevista no Planejamento Estratégico da Agência para o ciclo 2018-2021 e ela tem como um dos objetivos aumentar a representatividade da sociedade no processo decisório. A comissão vai ser formada por membros de entidades e instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, a Confederação Nacional da Indústria, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a Secretaria Nacional do Consumidor e o próprio Conselho de Consumidores de Energia Elétrica.

Já em funcionamento, o Conselho Nacional de Consumidores de Energia Elétrica tem o objetivo de representar os interesses coletivos, examinar questões ligadas ao fornecimento de energia, as tarifas e serviços das distribuidoras, além de realizar estudos e sugerir alterações na legislação. O conselho também acompanha a solução de conflitos instaurados entre consumidores e a distribuidora. José Luiz Nobre Ribeiro, presidente do Conacel, acredita que alguns pontos da relação entre consumidor e concessionária poderiam ser melhorados, como as perdas não técnicas. Ele ressalta ainda o desequilíbrio provocado pelos encargos setoriais na composição da tarifa. “Temos um componente de encargos e tributos que jogam a tarifa lá no alto”, admite.

Para Ribeiro, o consumidor no Brasil poderia desfrutar de equipamentos mais modernos como em outras partes do mundo em que já existem redes inteligentes e transformadores. Ao analisar a relação entre os consumidores e as concessionárias, o presidente do conselho vê o consumidor de energia em uma relação melhor que os de outros serviços públicos. Segundo ele, a relação não é tão conflituosa quanto parece, embora deva ser melhorada. “O custo da energia mexe demais com o sentimento do consumidor. A modicidade é essencial par ver se ele está o não satisfeito com a empresa”, adverte.

O órgão regulador também é elogiado por Ribeiro, que define a Aneel como uma das mais organizadas agências reguladoras do país. Como metas do conselho para 2018, ele quer que o Conacel atue mais na redução de impostos e vai acompanhar de perto a revisão da resolução 482, que regula a geração distribuída.

Um dos desafios do consumidor de energia é a concretização do Projeto de Lei da Portabilidade 1917, que terá a relatoria do deputado federal Fabio Garcia (DEM-MT). Nele está inserida a migração dos consumidores do ambiente de contratação regulada para o mercado livre de energia, a chamada ‘abertura do mercado’. De acordo com Carlos Faria, presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia, o PL vem em favor do consumidor, uma vez que ele traz a competição na compra da energia, o que hoje não existe. “Só abrindo o mercado vai ter maior concorrência, mais expansão, maior competitividade. Quando se olha para o mercado livre e pergunta por que os preços são mais baixos, a resposta é porque ele tem competição”, avisa. O PL está sendo discutido na câmara dos deputados.

Carlos Faria, da Anace: mercado aberto traz concorrência e vantagem para consumidor 

Esse acesso ao mercado livre de certa forma vai gerar uma espécie de ‘empoderamento’ do consumidor, uma vez que ele vai decidir sobre qual tipo de energia comprar e quem vai vender essa energia para ele. Na última quarta-feira, 4 de julho, a reunião da comissão especial que analisa o projeto de lei foi suspensa por conta do início da ordem do dia no plenário da Câmara dos Deputados e em seguida cancelada. O relator queria negociar um pedido de vistas coletivo com a oposição, mas o relatório sequer foi lido.

Outro fator que o presidente da Anace coloca como benefício desse PL é que ele retira a lógica que vinha imperando no setor, que ao menor sinal de desequilíbrio na geração, transmissão ou distribuição, imputava ao consumidor de energia os custos desse desacerto. Ele também lembra que o projeto de lei recebeu todo o trabalho que foi feito pelos agentes para a chamada pública 33 no ano passado e que a abertura do mercado foi um tema consensual nas discussões. O deputado Fabio Garcia planejava que o projeto fosse votado na próxima quarta-feira, 11 de julho, mas o cancelamento da última reunião traz indefinição para a data.

José Luiz Nobre Ribeiro, do Conselho Nacional de Consumidores de Energia também vê boas oportunidade para o consumidor na chamada portabilidade. Ele considera o movimento como irreversível e ressalta o aspecto da concorrência que ele traz. Para Ribeiro – que acredita que a mudança só valerá caso traga apenas benefícios, sem piora da situação – a chave para o desenvolvimento econômico é a concorrência, o que a abertura vai proporcionar. “Faz parte de uma nova regulação de um novo modelo do setor”, avisa. O presidente do Conacel também considera os prazos colocados para a portabilidade longos e sugere que eles poderiam ser mais acelerados.

Quem também elogia as alterações no modelo que o PL traz para o consumidor é o pesquisador em energia do instituto de defesa do consumidor, Clauber Leite. Pregando que o desafio é ter um mercado mais competitivo, ele cita o recente reajuste médio de 15,84% concedido essa semana à Eletropaulo (SP) e vislumbra que haverá alternativas com a migração para o mercado livre. “A gente tem que aceitar os aumentos e não tem opção nenhuma. Assim a gente teria mais condições de fazer outras escolhas”, aponta. Leite classifica a relação da distribuidora e clientes como precária, com o consumidor sendo desfavorecido.

Ele pede um período de transição e que o consumidor seja educado para saber lidar com as mudanças relacionadas. Assim como outras fontes ouvidas pela Agência CanalEnergia afirmaram, embora o movimento de renovação do modelo seja considerado bom, é preciso atenção especial e parcimônia aos consumidores residenciais de menor renda, que segundo Leite, estão mais vulneráveis e poderiam sofrer algum tipo de revés. “Não pode ocorrer uma liberalização geral porque se sabe que o mercado não vai favorecer esse tipo de consumidor”, pondera. O pleito do pesquisador do Idec é por uma campanha de esclarecimento sobre como é o mercado livre de energia.

Mas se o futuro reserva para o consumidor maior poder de decisão, o presente já começa a introduzir mais tecnologia e uma nova caracterização. Por meio da geração distribuída, o consumidor pode gerar a sua própria energia, realizar uma operação de mútuo com a distribuidora e aferir créditos na sua conta de luz. Atualmente com quase 45 mil ligações, a tendência é que a cada ano o número de unidades cresça cada vez mais. Essa nova modalidade de consumo também já começa a delinear os seus próprios desafios, como a massificação da GD compartilhada, que possibilita mais usuários – e a também ter uma melhor relação com a distribuidora no tocante aos prazos para a efetivação do contrato.

O bancário José Fonseca, sempre foi interessado em novas tecnologias e quando pesquisava sobre energia solar começou a se interessar por geração distribuída. A partir daí, assim que viu que no seu estado, o Maranhão já tinha a chance de ter GD na sua casa, não hesitou. Desde 2016, ele tem um sistema na casa dele, na capital São Luís. Ele conta que a empresa que instalou o sistema também foi responsável pela parte burocrática e que o não houve demora. “Foi rápido, não teve atropelos”, relata. Hoje, ele tem créditos a receber da distribuidora, já que está gerando mais que o seu consumo. A GD fotovoltaica permitiu que ele instalasse mais um aparelho de ar condicionado em casa e a liberdade para usar mais eletrodomésticos que antes.

Satisfeito com a GD, Fonseca lembra que sua esposa relutou em consentir a compra do sistema, preferindo que o investimento fosse em um novo carro para a família. Hoje, ele confidencia que ela só faz arroz em uma panela elétrica e esquenta a água do café em uma chaleira também elétrica. O sistema também vem atraindo a curiosidade dos vizinhos, que estão indo até a casa dele saber como funciona. “Na minha rua e nas proximidades, só eu tenho esse sistema”, afirma. O financiamento, feito em 36 meses, já foi pago. Fonseca também se queixa do controle dos créditos feito pela concessionária, alegando diferenças nos valores aferidos. “O consumidor tem que estar atento, mas o relógio bidirecional é o que marca”, frisa.

Ele pede mais divulgação da GD para que outros possam se juntar a ele na nova categoria de consumidor. Um de seus desejos é que a legislação avance e seja permitida a venda da energia gerada pelo seu sistema fotovoltaico. Atualmente a Aneel apenas permite o mútuo, que resulta em compensação na conta ou créditos que podem ser usados em outras unidades registradas em nome do cliente. “Se pudesse vender essa energia acredito que haveria um substancial interesse por parte dos consumidores também”, aposta. Ele critica o fato de que em outros países a venda ser possível e aqui no Brasil ainda não.

Já em São Paulo (SP), o engenheiro de sistemas Clemente Gauer, outro consumidor com GD, se queixa dos prazos impostos pela distribuidora local. Ele mesmo instalou o equipamento em sua residência, no bairro de Campo Belo. Hoje, ele paga um valor mínimo de conta de luz e desconta os créditos que sobram em uma outra propriedade em seu nome. Ele também se mostra satisfeito com o sistema de GD que tem na sua casa e elege o aspecto financeiro como principal vantagem. Assim como Fonseca, ele também prefere vender a energia gerada. Mas Gauer avisa que os empecilhos técnicos que poderiam ser suprimidos e acabam por alongar os prazos para instalação.

Sem um número de conexões significativo, os pleitos e reclamações para GD ainda não se contabilizam, mas já estão no radar das associações de defesa do consumidor. Clauber Braga, do Idec, vê a GD no momento restrita a um público específico, mas classifica como estranho que algumas distribuidoras menores tenham número de conexões inferiores aos de concessionárias mais pujantes, o que para ele poderia significar algum tipo de demora além do permitido por parte da distribuidora de energia. O pesquisador do Idec também sinaliza que algumas concessionárias estejam extrapolando os prazos de efetivação do processo. “Elas ainda não estão preparadas para isso, porque a demanda não é tão alta”, sugere.

Um aspecto que sempre vai pairar sobre o consumidor é que muitas vezes os avanços nas relações serão pautados pelo sucesso na comunicação desses avanços. Temas como bandeiras tarifárias e tarifa branca ainda não foram suficientemente explicados aos consumidores de modo que tivessem uma aderência ou adesão ótimas. A própria GD ainda ressente a pouca divulgação, seja por parte do órgão regulador ou dos agentes do setor. A liberalização do mercado deverá demandar um esforço nesse sentido da divulgação.

O mercado da energia tem uma complexidade própria e não é simples como o da telefonia, na comparação com um setor que na década de 1990 do século passado saiu do monopólio para a concorrência entre players. Para Carlos Faria, da Anace, esse esforço deverá partir de todos os agentes interessados, incluindo o governo. “Vamos ter que mudar hábitos que no consumidor hoje estão enraizados. Ele só pensa em ligar e desligar a luz. Vamos ter que mostrar para eles e quem quiser ganhar vai ter que trabalhar em cima disso”, avalia Carlos Faria, da Anace.