Os desafios para a separação de lastro e energia

Os desafios para a separação de lastro e energia

Idealmente deve-se perseguir um arranjo em que as fontes, além da energia que suprem, possam, por meio seus atributos próprios, tais como flexibilidade para o despacho e outros serviços ancilares, obter receitas em mercados específicos para, juntamente com a receita de lastro, assegurar a sua viabilidade econômica

Num momento em que o setor elétrico brasileiro passa por um ponto de inflexão, em que os seus agentes têm as melhores expectativas para início de um ciclo virtuoso, escolhas precisam ser feitas. Dentre essas escolhas, um problema extremamente complexo e desafiador que qualquer desenho de mercado elétrico precisa enfrentar refere-se à definição de um marco regulatório que estabeleça incentivos adequados à expansão sustentada da oferta e com eficiência econômica, possibilitando energia a preços competitivos para o consumidor final.

A literatura especializada é rica em exemplos de sucessos e insucessos e a experiência tem mostrado que os últimos superam os primeiros. Conceitualmente pode-se dizer que existem dois caminhos extremados: no primeiro e mais tradicional, estabelece-se a contratação antecipada obrigatória para todos os consumidores e, no segundo, o sinal de preço do mercado é o principal condutor da decisão de expansão. Em nenhuma das duas correntes há garantia de sucesso.

Na linha da contratação obrigatória para todos os consumidores tem-se um modelo regulado de repasse de custo ao consumidor por meio de tarifa. Na perspectiva do investidor, certamente este modelo é bastante atrativo, não acontecendo necessariamente o mesmo sob o ponto de vista do consumidor, uma vez que, realizado investimento, o mesmo precisa ser recuperado economicamente pela tarifa, a qual poderá conter ineficiências contratadas em razão da escolha equivocada da tecnologia de geração.

A linha em que a contratação da expansão da oferta é deflagrada pelo comportamento do preço, atualmente em uso na Europa e que se apoia no fundamento do liberalismo econômico, tem se demonstrada insuficiente para atender os interesses do investidor de geração e do consumidor. De um lado, o gerador tem sua receita totalmente vinculada ao preço do mercado à vista, experimentando incerteza de receita, e não a um contrato de longo prazo com preço pré-definido. Também, por outro lado, o consumidor se submete a picos de preço, insuportáveis em alguns casos, antes de algum investidor instalar nova capacidade. Esta linha de pensamento é especialmente problemática para países com crescimento significativo da demanda.

No Brasil, o marco regulatório vigente se apoia fortemente na obrigação da contratação antecipada da energia. Nesse ambiente, todos os consumidores regulados suportam a expansão da oferta por meio da demanda declarada pelas distribuidoras em leilões, cujos resultados são formalizados por meio de contratos bilaterais de longo prazo entre geradores e distribuidores. A flexibilização é a de que os consumidores do mercado livre não são obrigados a contratar com antecedência. Então, se a operação do sistema é realizada e todos os consumidores são atendidos física e contratualmente, o que ocorre é que os geradores ofertantes nos leilões regulados assumem o risco de parcela de sua energia que será comercializada para os consumidores livres. Em resumo, todos, sejam livres ou regulados, pagam pela expansão, mas quem dispara o processo de expansão é quase que exclusivamente o mercado regulado.

Esse modelo, sob o ponto de vista da expansão sustentada da oferta, vem funcionando relativamente bem quando concluímos que estruturalmente a oferta disponível vem atendendo a demanda. Contudo, se observamos que esse atendimento vem ocorrendo com custos absurdamente altos, que inclusive contribuíram para paralisar as liquidações do mercado de curto prazo, há que se desconfiar que algo não está bem. E de fato, tem-se um problema sério. A recente expansão da matriz aconteceu basicamente por meio de fontes renováveis e não-controláveis, hidrelétricas sem capacidade de regularização e termoelétricas de elevado custo de produção. Ressalte-se que ao mesmo tempo que termelétricas “salvam” o sistema do racionamento, elas impõem custos insuportáveis ao mercado como um todo.

Paralelamente a essa discussão é crescente e legítimo o desejo de o consumidor brasileiro querer escolher seu provedor de energia e as condições de contratação mais conveniente às suas necessidades. Essa tendência global impõe um desafio adicional, uma vez que se todos os consumidores são livres para escolher quando e de quem contratar energia, como assegurar a expansão da oferta sem a presença de algum mecanismo de coordenação? Observe que o consumidor livre não estará preocupado em oferecer um contrato de longo prazo para viabilizar a entrada de um novo gerador ao sistema. Tampouco, esse consumidor sozinho terá porte suficiente para viabilizar o novo gerador. Em resumo, ao se fazer a escolha de liberalizar o mercado, ambas as correntes de viabilização da expansão da oferta mencionadas anteriormente não funcionam satisfatoriamente e um novo caminho precisa ser desenhado.

Os formuladores de política pública para o setor elétrico brasileiro estão atentos a esse desafio e a alternativa mais discutida é chamada separação da contratação da capacidade de produção de energia elétrica, comumente denominada de “lastro” e a energia elétrica propriamente. Outros mercados elétricos já adotam esta prática que, em linhas gerais, significa obrigar a todos os consumidores a contratarem a capacidade de produção, no caso o lastro, e deixar para escolha de cada um a livre contratação da energia elétrica, no caso a commodity. Na prática, todos os consumidores passam a pagar pelo bem público de ter acesso à energia, mas as condições de contratação da energia efetivamente consumida é uma decisão individual.

Com esse modelo, uma entidade coordenadora define a necessidade de expansão da oferta para os próximos anos, realiza leilões para contratar o acréscimo de oferta, repassando parte do custo de forma mandatória a todos os consumidores. A outra parte da recuperação do custo, o gerador obtém pela receita a ser auferida no mercado de energia elétrica.

Aparentemente simples, esse arranjo, na prática não o é. Observe que o investidor de geração terá uma parte da receita assegurada por um longo prazo, mas outra parte da receita, virá de suas operações de venda no mercado à vista, o que representa uma alteração realmente transformacional em relação ao arranjo regulatório vigente.

Assim, surgem como desafios relevantes para esse arranjo encontrar mecanismos que assegurem a financiabilidade da expansão, o que não é uma tarefa simples em razão da baixa credibilidade de nosso processo de formação de preços à vista, aumentando o risco das operações de financiamento.

Idealmente deve-se perseguir um arranjo em que as fontes, além da energia que suprem, possam, por meio seus atributos próprios, tais como flexibilidade para o despacho e outros serviços ancilares, obter receitas em mercados específicos para, juntamente com a receita de lastro, assegurar a sua viabilidade econômica. O risco, aqui, reside no desejo de valorar tais atributos por meio de formulas e modelos matemáticos, que se mal calibrados, podem prometer energia competitiva, mas que acabam não cumprindo com esse requisito.

Em resumo, enfrentamos o dilema de aumentar o tamanho do mercado e, ao mesmo tempo, equacionar a expansão da oferta. Para se separar lastro e energia é necessário que se pense no desenho de mercado como um todo, observando-se que a receita a ser obtida pelos geradores nos mercados de energia e de serviços ancilares passa a ser decisiva para o sucesso da expansão.