Sejamos solidários inclusive na crise

Sejamos solidários inclusive na crise

O setor elétrico nacional, considerado um dos mais inovadores do País, que cria e aprimora tecnologias para gerar energia a partir das mais diversas fontes (água, sol, vento, resíduos e até mesmo as ondas do mar), vem se mostrando pouco criativo nos momentos de crise. Pela segunda vez, em menos de uma década, estamos diante de uma operação financeira na casa dos bilhões cujo intuito é socorrer os agentes dos segmentos de distribuição, transmissão e geração de energia elétrica. E quem pagará a conta, também desta vez, é o consumidor.

Em 2014, a falta de chuvas fez com que os reservatórios das hidrelétricas atingissem níveis extremamente baixos, obrigando o Operador Nacional do Sistema (ONS) a acionar usinas termelétricas, que geram energia a um custo bem mais alto para atender a demanda, que não se alterou de maneira significativa. Na época, o socorro financeiro ganhou o nome de “Conta-ACR” e superou R$ 30 bilhões, entre o valor financiado e juros.

Desta vez, a crise do novo coronavírus provocou redução no consumo de eletricidade e expectativa de inadimplência, devido à paralisação das atividades produtivas impostas pelo isolamento social em todo o território nacional. O setor novamente se mobilizou para obter um empréstimo, que chegou por meio da Medida Provisória nº 950/20, chamado de “Conta-covid”. O valor do auxílio terá teto de R$ 16,1 bilhões e os recursos serão obtidos junto a um conjunto de bancos numa operação capitaneada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com taxa de juros ainda não fixada.

Se, em 2014, o problema foi o aumento dos custos da geração de energia em razão do aumento do despacho das termelétricas, agora, ao contrário, o problema é o excesso de energia adquirido pelas distribuidoras e que não será consumido. Embora as razões sejam opostas, infelizmente, a solução apresentada pelo Governo Federal, com o apoio dos geradores, transmissores, distribuidores e comercializadores é a mesma: uma dívida a ser paga pelo consumidor num prazo de cinco anos. A última parcela da conta ACR, de 2014, foi paga em setembro do ano passado. A Conta-covid começará a ser paga em 2021.

Sem distinguir a origem e os efeitos das crises atravessadas pelo setor elétrico, a solução é a mesma, mas há grande disparidade entre a conjuntura da crise de 2014 e esta. Vivenciamos agora uma crise de demanda decorrente de uma pandemia que assola o mundo e que não está restrita ao setor elétrico. Uma crise cujos efeitos todas as atividades e todos os segmentos estão sofrendo!

O modelo de contratação de energia no mercado regulado, que concentra cerca de 70% do consumo do País, e é formado por residências, pequenos comércios, pequenas indústrias, empresas de serviços (escolas, consultórios médicos, salões de beleza, e muitos outros), é realizado por meio de leilões de energia. A partir de projeções de consumo, as distribuidoras calculam sua demanda e compram energia para supri-la em contratos de longo prazo.

Quando os geradores hidráulicos não conseguem entregar energia, o Operador Nacional do Sistema despacha usinas termelétricas para gerar o volume de , energia necessário ao atendimento do mercado. As distribuidoras pagam um preço mais alto. Foi o que aconteceu em 2014. A conta chegou por meio de cobrança acrescida na tarifa.

Por outro lado, quando a demanda é drasticamente reduzida, as distribuidoras ficam sem caixa porque não recebem os recursos necessários para o cumprimento de dos seus contratos junto aos outros agentes da cadeia, cujos serviços fazem parte da conta de luz, os de transmissão, de geração e os impostos e encargos devidos para os estados e o governo federal.

Apelidadas pelo setor elétrico de “caixa”, as distribuidoras repassam boa parte do que arrecadam para outros agentes ou para o poder público. Se o faturamento com a venda de energia diminui e os compromissos com geradores e transmissores são mantidos e não são ajustados à nova realidade, a situação financeira das distribuidoras será afetada, de maneira similar ao que as empresas de todos os outros setores também foram.

De acordo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) o consumo de energia diminuiu 11% em maio, em comparação com o mesmo período no ano passado. Como as distribuidoras adquiriram energia para atender seus clientes por meio de contratos de longo prazo, com base em projeções de mercado de mais de cinco anos atrás, o resultado é a sobrecontratação. Ou seja, o volume contratado é maior que o consumo. As sobras de energia podem ser liquidadas no mercado de curto prazo, mas, com o excesso de oferta, o valor de venda é menor do que o dos contratos, perfazendo prejuízo.

Desta vez, portanto, o prejuízo não pode ser atribuído só ao consumidor. Ele não usou essa energia, e, em muitos casos, inclusive, porque não podia abrir seu comércio, sua academia ou seu salão de beleza. Não é justo que a mitigação dos efeitos da crise recaia somente sobre eles. Parece-nos menos justo ainda que um cabeleireiro, por exemplo, que passou três meses com seu salão fechado e que não vai recuperar todo prejuízo sofrido em decorrência do tempo em que ficou parado, venha a pagar uma conta de luz mais cara durante a retomada de sua atividade porque os agentes do setor elétrico não estão dando sua cota de sacrifício neste momento de crise.

Antes de colocar as parcelas do financiamento ao setor elétrico na conta dos consumidores, é preciso uma reflexão mais aprofundada sobre as consequências dessa ação para a sociedade brasileira. É de se exigir, inclusive, maior transparência nas avaliações imprescindíveis para se estimar a necessidade e o volume dos recursos necessários e os encargos que serão repassados.

Não podemos prosseguir num modelo em que os lucros das empresas do setor elétrico são preservados e os seus prejuízos são alocados para os consumidores. As soluções de crises e a tão desejada modernização precisam ir além de práticas evidentes, da adoção de tecnologias inovadoras e incluir modelos que tornem o setor mais resiliente e criativo também no aspecto econômico, para que as “mágicas fórmulas” do passado possam ser superadas em benefício de todos.

Carlos Faria é diretor-presidente da Associação Nacional do Consumidores de Energia (ANACE).