Sobra de energia traz prejuízos

Sobra de energia traz prejuízos

Afastada a ameaça de racionamento, o setor precisa de ajustes para não ser prejudicado pela sobrecontratação, que fragiliza o caixa das empresas.

Em março de 2015, executivos do setor elétrico tinham reuniões frequentes com meteorologistas.

Na época, o receio era com a falta de chuvas e a ameaça de um racionamento que poderia ser ainda mais drástico que o de 2001.

Um ano depois, a forte recessão e um bom período úmido permitiram a recuperação dos reservatórios e afastaram a possibilidade de racionamento em 2016 e 2017.

Mas, paradoxalmente, trouxeram outro motivo de preocupação: o excesso de energia, que se traduz em sobrecontratação para as distribuidoras e fragiliza o caixa delas.

Em 12 meses, o setor passou da ameaça de racionamento à sobreoferta, o que evidencia que o modelo do setor, implementado em 2004 pela então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, precisará passar por ajustes.

Os aperfeiçoamentos serão necessários não apenas para sanar essa questão, mas para retomar investimentos no setor de transmissão, discutir a construção de empreendimentos em áreas indígenas e repensar os custos de energia, que serão crescentes, o que afetará a competitividade das indústrias e do comércio.

A mudança substancial de cenário foi motivada por importantes alterações, tanto no lado da demanda como no lado da oferta.

Do lado da demanda, verificou-se a redução do consumo, resultado da elevação das tarifas de eletricidade, da redução da atividade econômica e das temperaturas mais baixas.

“Do lado da oferta, notou-se um significativo aumento da capacidade de geração disponível, tanto pela entrada em funcionamento de novas usinas e linhas de transmissão que estavam em construção como pela melhoria do cenário hidrológico, que aumentou a geração de energia das hidrelétricas”, diz António Farinha, sócio no escritório da Bain & Company em São Paulo e líder da prática de utilities na América do Sul.

Ele calcula que, neste ano, haverá queda do consumo nos mercados residencial, comercial e industrial.

Para 2017, a expectativa é de ligeira recuperação, dependendo da evolução da atividade econômica.

“Isso é natural, depois de dois anos – 2015 e 2016 – de queda do consumo total, e se aplica principalmente ao consumo industrial, que, após três anos de queda – 2014, 2015 e 2016 -, deverá voltar a crescer em 2017, mesmo que seja ligeiro”, aponta.

No atual modelo do setor elétrico brasileiro, a expansão do parque gerador é garantida por meio de financiamentos das novas usinas, lastreadas nos contratos de longo prazo que os geradores estabelecem com as distribuidoras, que, por força de seus contratos de concessão, devem garantir o fornecimento à sua região.

Os contratos de compra das distribuidoras são usados pelos geradores como garantia de recebíveis para financiarem seus empreendimentos e, assim, expandirem o segmento.

“As distribuidoras não lucram nada com a compra de energia para atender seu mercado, mas podem perder muito se errarem na previsão de mercado e comprarem quantidade menor ou maior”, aponta Nelson Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee ).

A redução de demanda tem impacto sobre as distribuidoras, que hoje estão sobrecontratadas além do limite de 5% que elas podem carregar nas tarifas.

Nas estimativas de Luiz Barroso, sócio da consultoria PSR, as distribuidoras hoje estão com cerca de 10% de sobrecontratação.

Em março de 2011, quando elas contrataram energia nos leilões A-5 (energia a ser entregue neste ano), as estimativas dos analistas eram de que o Brasil crescesse 4,5% em 2016, enquanto hoje as previsões são de queda de 3,8% do PIB.

“Apenas essa reversão de expectativa aponta uma sobreoferta de 7,5 gigawatts de capacidade”, diz Barroso.

A queda da economia se junta à entrada em operação de novas usinas, como Belo Monte e térmicas, o que pode levar a uma sobre oferta de 12 GW médios em 2017 e 2018, nas estimativas da PSR.

A sobreoferta traz dois problemas.

Primeiro, um risco comercial para as distribuidoras, que possuem energia além do necessário, sem poder repassar esse custo.

Segundo, a inadimplência na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica poderá repetir um problema visto em 2001, antes do racionamento, quando o então Mercado Atacadista de Energia (MAE), criado para negociar sobras de contratos, ficou paralisado por uma discussão entre Fumas e a usina de Angra.

“Hoje o problema é mais complexo e envolve mais agentes, em situações financeiras diferentes”, diz Barroso.

Estima-se uma dívida superior a R$ 3 bilhões.

Os principais credores são as usinas térmicas, que têm sido despachadas nos últimos anos para garantir a segurança do sistema, diante da falta de chuvas e redução do armazenamento das hidrelétricas.

“Em um cenário catastrofista, as térmicas podem ficar sem ter como pagar gás em algum momento.”

Esse impasse pode se tornar um fator de pressão a mais nos preços da energia elétrica no país.

“As distribuidoras contrataram energia nos leilões realizados há três e cinco anos, estimando um cenário de crescimento. Agora o mercado está em queda, o que poderá trazer mais pressão sobre o caixa delas, já que tende a ocorrer uma sobrecontratação de 10%, que pode parar no bolso do consumidor e do acionista”, diz João Carlos Mello, da Thymos Energia.

No momento, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) lançou uma audiência pública para discutir o assunto.

“O governo está de olho nessa questão”, afirma o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Mauricio Tolmasquim.

O preço da energia já é um problema e pode se tornar maior.

O setor industrial consome aproximadamente 30% da energia produzida no Brasil.

No terceiro trimestre de 2015, os custos do segmento com o insumo subiram 43,9%, se comparados com o mesmo período do ano anterior, de acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Segundo dados divulgados em dezembro pela Abradee, a tarifa da energia elétrica consumida pela indústria brasileira é a sexta mais cara entre os 34 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Nos supermercados, a energia superou despesas com aluguel e se tornou o segundo principal custo operacional do segmento, atrás apenas da folha de pagamento.

A disparada das tarifas, que no ano passado subiram mais de 50% em algumas cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, tem levado indústrias e comércio a buscarem alternativas diante do cenário de recessão da Economia.

Isso deve estimular a autoprodução e a geração distribuída solar.

Em 10 de março, entrou em vigor uma nova regulação da Aneel que ampliou os incentivos à geração distribuída, elevando a potência para as unidades geradoras de até 75 kW na microgeração, e minigeração, até 3 MW, no caso de hidrelétricas, e até 5 MW para as demais fontes renováveis.

A validade dos créditos para compensação junto à distribuidora também sofreu alterações, estendida de 36 para 60 meses.

“Já há consulta de empreendedores que começam a olhar isso, uma coisa nova no setor, que poderá andar rápido”, diz Marcelo Girão, superintendente de project finance do Itaú BBA. Supermercados, shoppings, postos de gasolina e operadoras de telecomunicações são algumas das empresas que poderão avaliar investimentos na área.

O custo marginal de expansão do sistema será crescente.

As usinas hidrelétricas têm sido construídas sem grandes reservatórios, o que reduz a capacidade de armazenamento do sistema.

Entre 2013 e 2018, quando as usinas do rio Madeira e Belo Monte entram em operação, está prevista a entrada de 20 mil MW de capacidade hídrica no sistema, sendo que só 200 MW têm reservatórios.

Isso fará a capacidade de armazenamento cair para 3,8 meses em 2018, segundo estimativas da CPFL Energia.

Isso faz com que cresça a necessidade de uso de térmicas na base (eólicas e solares são intermitentes, por dependerem de vento e sol), mais caras. “O Brasil precisará de energia térmica na base”, diz Tolmasquim.

As hidrelétricas da região Norte também terão questões socioambientais mais complexas de serem resolvidas que exigirão pesadas compensações financeiras.

“As usinas do rio Madeira e de Belo Monte mostraram atrasos e alta de custos e apontam as dificuldades crescentes de construção das hidrelétricas na região Norte”, diz Alexei Vivan, presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Energia (ABCE).

Além das questões socioambientais, os empreendedores e financiadores de hidrelétricas estarão de olho em outro ponto que ganhou relevância no setor: o GSF (Generation Scaling Factor).

Quando as chuvas não vêm, as turbinas hidráulicas não funcionam à plena carga, enquanto as usinas termelétricas têm de funcionar sem interrupção para poupar os reservatórios.

Sem poder atender os contratos firmados com seus compradores, os geradores têm de ir ao mercado comprar a energia que não puderam gerar por causa da estiagem.

“Esse é um ponto que ganhou alcance com a estiagem de 2014 e 2015 e que agora está nas planilhas do empreendedor”, diz Diogo Berger, superintendente de project fmance do Santander.

Há dúvidas também se o regime hidrológico de 2015 foi exceção ou se reflete as mudanças climáticas e seus impactos, o que poderia afetar o fluxo de caixa do projeto com mais regularidade ao longo do contrato.

“Pode ser que o empreendedor peça um retorno maior por causa dessa eventualidade que ganhou eco”, diz Girão, do Itaú BBA.

O governo editou regulação no ano passado para resolver o problema que atingiu o caixa das geradoras nos últimos dois anos.

No mercado cativo, a solução agradou às empresas, que aderiram à ideia, mas no mercado livre não houve grande adesão, o que tem levado à inadimplência na câmara de comercialização de energia.

Fonte: Valor Econômico 31/03/2016 Roberto Rockmann