A insensatez do modelo
Tem alguma sensatez indenizar alguém que permanece como detentor dos ativos, com sua outorga prorrogada por mais 30 anos, com uma receita que assegura equilíbrio econômico e financeiro? Claro que não, pois a concessão não fora extinta
As primeiras semanas de maio, apesar da permanente e severa escassez de água nos reservatórios das hidrelétricas, foram marcadas por algumas boas notícias, em especial aquelas em que o governo já fala em mudanças relevantes no modelo do setor elétrico. Isso é muito bom. São notícias que têm o condão de sinalizar um futuro mais promissor para um design de modelo do qual nada de razoável se pode esperar. É uma serpentina de erros quase que em feedbacks negativos, em que se tornou impossível a correção de alguma coisa sem afetar outras tantas.
Fui presenteado recentemente com a edição (portuguesa) de 2017 de um livro dos anos 60, de Paul Tabori, cujo título é A História Natural da Estupidez. Parece obra de Roberto Campos, pois o leitor fica entre o riso e o choro, dada a forma até engenhosa como a estupidez é conquistada e preservada. Meses antes tinha concluído a leitura de outra obra de estilo parecido (Pescando Tolos), de dois ganhadores do Nobel da Economia: George Akerlof e Robert Shiller.
Esses dois livros me fizeram pensar novamente no modelo atual do setor elétrico brasileiro, aquele modificado em 2012, um muito caro aprendizado de como não fazer, na forma e no conteúdo. Seu design é irracional e pressupõe a irracionalidade dos usuários, que não saberiam contar nem escolher, precisando de um ser superior (um Midas) para decidir por eles, para calcular e alocar seus riscos e custos. A única coisa da qual se tem certeza no modelo é que seus custos serão sempre maiores para os consumidores.
A estupidez é para muitos o contrário da sensatez, isto é, surge do insensato, cuja lógica só pode ser explicada por quem a engendrou. Sua face mais dispendiosa é a burocracia, com seus modelos e padrões. Exemplo: suponha-se que o governo tenha concedido a A, por 30 anos, o direito de explorar uma linha de transmissão que interliga a usina H à cidade B. No 25º ano, porém, o governo resolve prorrogar por mais 30 anos a concessão da linha, exigindo de A (que aceita), como contrapartida, a redução da tarifa. Depois disso, mediante leis, decretos, portarias e resoluções, o governo decide por uma indenização para benefício de A, pelos seus ativos ainda não depreciados ou amortizados.
Tem alguma sensatez indenizar alguém que permanece como detentor dos ativos, com sua outorga prorrogada por mais 30 anos, com uma receita que assegura equilíbrio econômico e financeiro? Claro que não, pois a concessão não fora extinta. Apenas se estaria a agregar um custo adicional e a escolher alguém para pagar por ele. Esse seria o tipo de decisão que não teria qualquer relação com a estabilidade de regras ou com a segurança jurídica. A pretensão era alcançar uma meta política, que era a redução das tarifas a qualquer custo. E o transmissor ganhou mais 30 anos, por isso aceitou a nova regra.
Outro exemplo bem atual. Na primeira semana de maio de 2017 o custo da energia no mercado de curto prazo aumentou cerca de 40%, e assim permaneceu. Só que a oferta é a mesma, o cenário é de carga decrescente e nada mudou na configuração da rede. Isto é, não há qualquer razão factual ou mudança tecnológica que explique a dimensão do aumento de preço. Porém, os modelos matemáticos (nossos Midas) entenderam que os riscos são maiores para os consumidores que, por isso, deveriam pagar bem mais. A conta lhes chega sob a forma de bandeira vermelha, que aumenta imediatamente a tarifa. De maio a dezembro deste ano o consumidor irá desembolsar mais de R$ 8 bilhões com a bandeira tarifária, grande parte disso por causa do “aumento dos riscos”.
Em 2015 ocorreu fenômeno semelhante. Como base em uma Medida Provisória, foram transferidos para os consumidores os custos do que se convencionou chamar de repactuação dos riscos hidrológicos. Como, em 2017, tais riscos são elevados e os custos de curto prazo idem, os consumidores vão arcar com mais uns R$ 20 bilhões, que virão em suas tarifas neste e no próximo ano. Roberto Campos e Paul Tabori talvez não se aguentem de rir e de chorar com tamanha insensatez. Por que não é dado ao consumidor o direito de escolher o que fazer?
Parece uma história bem antiga, utilizada para ilustrar a livre iniciativa e seus efeitos. Um artesão produzia lindas peças de argila e madeira e as transportava para uma feira-livre no lombo de uma mula. Gastava um dia e uma noite para chegar à feira. Porém, no período de escassez de água, quando os riachos ficavam mais secos, levava também um barril com 50 litros de água, para ele e para a mula. Carregava menos produtos nessa época, pois a capacidade de transporte da mula ficava limitada. Porém, a seca ficou mais longa e rigorosa, obrigando o artesão a carregar mais água no lombo da mula. Isso diminuía mais ainda a quantidade de produto que oferecia, prejudicando suas vendas e a dos seus nove concorrentes.
Foi quando o coordenador da feira, um burocrata da prefeitura, teve uma brilhante ideia: cada artesão deveria adquirir uma mula adicional, somente para transportar água. Nove seguiram a recomendação, menos um, que preferiu fazer produtos mais leves e menores e a descartar aqueles que ainda assim pesavam proporcionalmente mais. Sua única mula passou a galopar mais rápido e a beber menos água. Seus lucros aumentaram muito e seus concorrentes demoraram a reagir, pois não era fácil se livrarem do elevado custo fixo que assumiram. Ficaram presos a insensatez do coordenador da feira, que eles viam como um Midas.
A excessiva centralização das decisões no âmbito do setor elétrico, sobretudo aquelas associadas ao modelo de formação do preço e de alocação de riscos, reproduz situação análoga à da mula adicional, pois pressupõe que os ofertantes, todos, possuem os mesmos custos totais e que os demandantes, todos, não podem mudar seus hábitos e costumes, consumindo menos energia. Isto é, pressupõe que nada pode ser descartado, que temos que carregar o mesmo peso, sendo necessário gastos adicionais cada vez maiores com a conta de energia, que não tarda e chega. É um modelo que só existe aqui, cuja lógica só é sensata para quem o desenhou ou para quem dele tirou algum proveito (os pescadores de tolos, conforme denominação de Akerlof e Shiller).
Mas as coisas já dão sinais de que podem mudar. Há indicativos de que as autoridades do setor elétrico já perceberam a incoerência, que os custos não precisam subir tanto, nem na escassez de água. Um pouco de descentralização, como sugerem os movimentos recentes no setor de gás natural, é um bom caminho, na pior das hipóteses para minimizar os efeitos da estupidez, que foi ministrada em doses avassaladoras entre 2012 e 2015.
Antes que esqueça, a conta da indenização das transmissoras, de mais de R$ 62 bilhões, chegou antecipadamente, antes mesmo de se transformar em receita para as indenizadas. Essa, a propósito, é outra característica do modelo atual, em que o consumidor paga antes ou à vista, mas, quando tem a receber, só a perder de vistas. Todos os riscos são transferidos para os consumidores, que já compram antecipadamente 100% da energia que pretendem utilizar. Mas essa compra antecipada em nada o protege, pois sempre vai ter mais “água” para suportar, sem contar os subsídios cruzados carregados na CDE e em outros encargos. A conta do consumidor, em 2017, já ultrapassa de R$ 35 bilhões, só a parte relacionada à insensatez. Não há como gerar empregos e ser competitivo em um ambiente que só agrega custos.