Energia: é importante o novo governo ouvir os técnicos
Para viabilizar a necessária modernização do setor de energia, é imprescindível que os erros do passado não se repitam. Indicações políticas e compadrio não contribuem para a evolução da política energética. Por isso, vemos com bons olhos os acenos feitos pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, no intuito de indicar profissionais de reconhecida competência técnica para os altos cargos executivos. Dessa forma, a expectativa do setor é encontrar no Ministério de Minas e Energia (MME), nas agências reguladoras e nas demais entidades que coordenam o setor um canal aberto e qualificado de interlocução. Afinal, são muitas as demandas a serem resolvidas — ou, pelo menos, endereçadas — nos próximos quatro anos.
Nos primeiros dias de 2019, o novo governo terá de enfrentar uma das questões mais urgentes do setor elétrico: a judicialização do risco hidrológico, chamado de GSF (Generation Scaling Factor) no jargão técnico. O termo faz referência ao descolamento entre a quantidade de energia negociada por usinas hidrelétricas em contratos e aquela que foi efetivamente gerada. Entretanto, como o Brasil adota um modelo centralizado de gestão, a decisão de ligar ou desligar as turbinas não cabe exclusivamente às usinas — há momentos em que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) solicita que essas usinas operem abaixo de sua capacidade máxima para preservar a água em seus reservatórios. O prejuízo é dividido entre agentes do setor e consumidores, mas alguns desses agentes conquistaram liminares na Justiça que os exime do rateio da conta.
O imbróglio em torno do GSF pode gerar uma inadimplência superior a R$ 10 bilhões até o final de 2018 e travar as negociações na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Há esforços em prol de uma solução, mas nenhuma garantia até agora. Entre as alternativas estão a inclusão do tema em Projeto de Lei (PL) do Senado ou a elaboração de uma Medida Provisória, a ser referendada pela presidência no próximo ano. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também vem articulando uma saída alternativa para o impasse, pois a questão é estrutural. E, embora a resolução do passivo seja fundamental, ela não acaba com o problema: sem uma revisão nas regras, os geradores continuarão expostos e em pouco tempo essa matéria retornará à pauta.
Outra questão fundamental transita no Congresso Nacional por meio do PL 1917/15: uma proposta para a expansão gradual do Mercado Livre de Energia, que prevê aos consumidores de qualquer tensão o direito de escolher seu fornecedor de energia elétrica. A migração seria liberada em etapas, até seis anos após o início de tramitação da lei, previsto para 2020. Esse texto é resultado de um profundo debate entre agentes do setor e representantes do governo a partir de contribuições enviadas para o MME na Consulta Pública 33, realizada em 2017. Com o apoio do Congresso, o novo governo terá papel decisivo na articulação política que decidirá o futuro do setor.
Da mesma forma, aguarda-se com urgências deliberações em torno de processos como o da desburocratização e da desestatização da área de energia. Embora não esteja claro se a Eletrobrás será incluída no pacote de privatizações, há expectativas de que as distribuidoras que ainda estão sob o controle da companhia passem para o controle da iniciativa privada em breve, com o destravamento dos leilões. No caso da Amazonas Energia, há o risco de liquidação da empresa, em prejuízo de milhões de consumidores, se o certame não for realizado. A venda da distribuidora de Alagoas está suspensa por meio de liminar.
A nova equipe terá pela frente, ainda, a renovação do acordo para importação de gás natural da Bolívia e a discussão sobre a contratação da capacidade de transporte do gasoduto que liga os dois países, o Gasbol. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) se prepara para abrir um chamamento público às empresas que queiram atuar no gasoduto pelo lado brasileiro – um movimento que vem sendo elogiado pelo mercado. Caberá ao governo dar prosseguimento à tendência de desverticalização do setor, iniciada com a Lei do Gás, em 2009.
Também será de responsabilidade do governo Jair Bolsonaro a condução das negociações com o Paraguai para renovar o contrato da Usina Hidrelétrica de Itaipu, que expira em 2023, quando finda também o pagamento da dívida contraída para a construção da usina. Itaipu fornece cerca de 15% da energia elétrica consumida no país e, se o acordo não for renovado, o país vizinho poderá deixar de fornecer ao Brasil uma parte significativa desse montante. Os estudos para a renegociação do Anexo C, que contém as bases financeiras do Tratado de Itaipu, estão entre os temas estratégicos do setor elétrico para os próximos anos.
Nenhuma dessas questões pode ser resolvida a contento sem a participação de um corpo técnico qualificado, sem estudos e simulações, sem análises criteriosas. Esse conhecimento deve servir de base para a definição de uma política energética clara e objetiva. Somente a partir de princípios bem estabelecidos, elaborados em consonância com os agentes do setor e a sociedade, serão construídos o arcabouço regulatório e as respetivas políticas públicas para que seja assegurado o acesso universal, confiável, moderno e a preços acessíveis aos serviços de energia.