Gastos da CDE explodem e reacendem discussão sobre subsídios
Debate envolve reavaliação de descontos tarifários. Aneel fala em recadastramento de beneficiários.
A explosão das despesas da Conta de Desenvolvimento Energético, em razão do peso dos subsídios, criou uma situação incômoda para o governo e a Agência Nacional de Energia Elétrica, que aprovou recentemente aumento de R$ 1,9 bilhão nas cotas da CDE de 2018. A Aneel deve anunciar em 15 dias os resultados de um diagnóstico sobre a situação da conta setorial, e apresentar propostas de medidas simples e imediatas, como o recadastramento dos beneficiários dos descontos tarifários na área rural, além de sugestões para a discussão de alterações estruturais e de caráter legal.
O orçamento da CDE ficará em R$ 20,053 bilhões esse ano. O valor inicial era de R$ 18,8 bilhões, mas teve de ser revisado pela agência para cobrir despesas adicionais da conta.
“O setor elétrico vem trabalhando com um cadastro antigo. Chegou o momento de a gente organizar essa questão e, de fato, garantir a aplicação da lei para aquele que merece o benefício. Isso só vai poder ser feito mediante o recadastramento”, explica o diretor-geral da autarquia, Andre Pepitone. Ele destaca que a conta dos descontos aplicados ao consumidor rural está próxima dos R$ 3 bilhões em 2018, sem contar os R$ 800 milhões concedidos aos produtores rurais irrigantes, e questiona se o universo dos beneficiados atualmente abrange realmente quem tem legitimidade para receber o subsídio.
A agência reguladora também pretende propor ações estruturantes, como a discussão sobre os descontos na tarifa de uso do sistema de distribuição para empreendimentos e consumidores de energia de fontes incentivadas (usinas eólicas e solar fotovoltaicas, pequenas centrais hidrelétricas e cogeração de energia). “Nós temos o desconto no fio da fonte, e temos o desconto no fio do consumidor que compra dessa fonte. Então, é importante a gente apresentar os números, saber quanto cada um está onerando a conta de energia, para travar uma discussão com a sociedade”, afirma Pepitone.
Defesa do recadastramento dos beneficiários. André Pepitone, da Aneel
Essa conta aumentou significativamente nos últimos anos, em consequência da migração para o ambiente livre de consumidores com carga acima de 500 kW e abaixo de 3 MW, conhecidos como consumidores especiais. Os descontos na tarifa fio aplicados tanto às usinas de fonte incentivada quando aos consumidores que compram energia desses empreendimentos no mercado livre aumentaram 286% em quatro anos, e passaram de R$ 881 milhões em 2014 para R$ 3,4 bilhões em 2018. De 2017 para 2018, o aumento foi de 57,60%.
O estudo da Aneel foi pedido pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico. A discussão sobre os subsídios tarifários não é uma iniciativa isolada do Ministério de Minas e Energia ou da agência reguladora. O Ministério da Fazenda colocou o assunto em pauta em seminário realizado na semana passada em Brasília, e o Tribunal de Contas da União concluiu uma auditoria na conta, cujo relatório está pronto para ser pautado no plenário do TCU.
“É senso comum que a tarifa de energia está alta”, afirma o diretor-geral da Aneel. Ele destaca que a agência tem o papel institucional de anunciar a tarifa para sociedade, e sofre, com isso, o ônus de comunicar sucessivos aumentos ao consumidor.
A compra de energia é o item que mais pesa atualmente no bolso. Ela representa 48,3% da tarifa, sem considerar os tributos estaduais (ICMS) e federais (PIS e Cofins), enquanto os encargos setoriais que estão dentro da CDE somam 16,1%. A proposta da agência é atuar justamente nessas duas parcelas de custo, para obter resultados concretos na redução do custo final da energia.
A obrigatoriedade de elaboração de um plano de redução estrutural das despesas da CDE foi estabelecida pela lei 13.360, de 2016. O Ministério de Minas e Energia criou um grupo de trabalho para discutir a questão e elaborar um relatório preliminar, que o MME apresentou na Consulta Pública 45, entre maio e junho desse ano. O documento propõe como medidas de racionalização dos custos da CDE o estabelecimento de um teto geral para as despesas, a definição de prioridade nos gastos da conta e o aprimoramento do desenho dos subsídios.
O próprio ministério reconheceu que essas medidas não seriam suficientes para garantir, por si só, a redução estrutural prevista na lei, e sugeriu a adoção de um conjunto de ações adicionais. As opções propostas foram incluir um fator de redução estrutural das despesas da CDE, sem eliminar os subsídios; instituir esse fator de redução com eliminação ou diminuição significativa dos subsídios; ou transferir a totalidade dos subsídios da CDE para o Orçamento Geral da União, com uma regra de transição para que isso aconteça.
O diagnóstico traçado pelos técnicos do ministério coincide com as conclusões de auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, que foi concluída e está pronta para ser pautada a qualquer momento no plenário do TCU. Em resumo, o MME apontou como problemas da CDE a ausência de limitação de gastos em termos de valor e de prazo, e o próprio desenho dos subsídios, que não prevê contrapartida dos beneficiários, não tem foco e critérios de saída, não tem limite de prazo para concessão do benefício nem limitação do montante a ser subsidiado, e também não impede a cumulatividade dos subsídios.
A CDE custeia atualmente nove tipos de subsídios e tem 16 tipos de beneficiários, segundo levantamentos do MME e do TCU. O fundo setorial repassa recursos para cobrir o combustível de usinas termelétricas dos sistemas isolados, por meio da Conta de Consumo de Combustíveis; o carvão mineral nacional usado para geração termelétrica no sul do país; a Tarifa Social de Energia Elétrica para consumidores de baixa renda; os descontos nas tarifas de uso dos sistemas de Transmissão (Tust) e de Distribuição (Tusd) para empreendimentos de energia incentivada (pequenas usinas hidrelétricos e usinas de fontes solar, eólica, biomassa e cogeração qualificada); os descontos nas tarifas de consumidores rurais e de consumidores rurais irrigantes e aquicultores; os descontos nas tarifas de energia para prestadores de serviço público de água, esgoto e saneamento e de serviço público de irrigação; universalização do acesso à energia elétrica, por meio do Programa Luz para Todos; e descontos nas tarifas de energia de distribuidoras de pequeno porte (incluídas as cooperativas), para compensar a reduzida densidade de carga desses mercados.
A auditoria do TCU na CDE fez uma varredura não apenas nos números disponíveis da conta, mas também nos projetos de lei que podem eventualmente levar à criação de novas despesas. A conclusão é de que há uma tendência de criação de novos subsídios em 25 projetos que tramitam no Congresso Nacional. Esses projetos incluiriam reduções no custo da energia elétrica para áreas ainda não contempladas, como postos de saúde e hospitais.
A diretora da Secretaria de Fiscalização de Desestatização e Regulação do órgão, Arlene Costa Nascimento, afirmou na semana passada, durante debate promovido pelo Ministério da Fazenda, que parte dos gastos incluídos no orçamento da CDE não é transparente e não passa pelo crivo do Legislativo do ponto de vista orçamentário.
“São políticas públicas pagas por essa conta, e não necessariamente têm a transparência devida. Falta clareza em relação aos objetivos e onde elas se inserem. Essa foi uma pergunta de auditoria, e a gente viu uma ausência de cuidados em relação a esses pontos”, criticou a servidora. Ela destacou que os subsídios mais antigos são pagos há mais de 45 anos, mas somente o carvão mineral e o programa de universalização Luz para Todos têm um horizonte de finalização.
O consultor legislativo do Senado, Rutelly Marques da Silva, concorda que no Congresso existem muito mais projetos para aumentar do que para cortar subsídios na energia elétrica. E a situação deve ficar pior, porque com a aprovação da emenda constitucional que estabeleceu o teto de gastos por 20 anos, fica ainda mais difícil acomodar qualquer benefício no orçamento da União.
O resultado disso, explica, é que grupos de interesse bem organizados podem intensificar sua atuação para obter redução de custos por meio da tarifa de energia. No limite, pode haver incentivo para que o próprio Executivo use esse tipo de saída para retirar gastos do orçamento e acomodar outras despesas no teto de gastos. “Tem surgido várias propostas em diversos setores. Para que? Para o governo criar fundos fora do orçamento. E aí esse fundo assume uma determinada despesa, que, em tese, deveria ser assumida pelo orçamento”, diz Rutelly Marques.
Grupos de pressão conseguem passar demandas por subsídios. Rutelly Marques, consultor legislativo do Senado
Para o economista, “a perspectiva para os subsídios do setor elétrico é ruim. E a culpa não é da CDE, mas dos subsídios”. Ex-assessor do Ministério de Minas e Energia, Marques afirma que é preciso pôr um freio nessa trajetória para corrigir distorções sociais, resultantes da transferência de renda de segmentos menos favorecidos para os mais favorecidos; distorções econômicas, como o incentivo ao deslocamento de recursos de investimentos por grandes consumidores para a autoprodução de energia; e ambientais, como a história do produtor irrigante tirando água de um rio que não tem água.
O ex-secretário-executivo do MME, Paulo Pedrosa, reconhece que há subsídios que espelham políticas públicas, mas essas políticas não foram decididas com transparência. Ele questiona, por exemplo, onde se tomou a decisão que o consumidor de energia elétrica deveria subsidiar o consumidor de água, se essa decisão não está explícita em lugar nenhum; e pergunta por que se decidiu subsidiar a grande agricultura de exportação.
“Decisões foram tomadas sem refletirem uma política, e depois essa política não foi validada ao longo do tempo. Então, mesmo que tivesse sido um a política tomada em uma decisão democrática lá atrás, ela precisaria ser reavaliada. Isso também não aconteceu”, conclui Pedrosa. Em sua opinião, essas discussões não podem ser pautadas apenas por quem recebe o benefício. “Quem paga o benefício tem que sentar na mesa também, porque senão todo subsídio vai ser aprovado.”
Discussão sobre subsídios deve envolver a sociedade. Paulo Pedrosa
Pedrosa acredita que a discussão sobre os subsídios da conta de energia tem que ser pautada como uma bandeira para a sociedade, e observa que para se enfrentar o problema é necessário “enfiar o dedo em vespeiros.” Ele é otimista, porém, em relação ao governo que vai assumir no ano que vem com força popular, com um Congresso que terá dois terços do Senado com oito anos de mandato e toda a Câmara no início do mandato de quatro anos.
Na visão do presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres, Edvaldo Santana, falta vontade política para resolver a questão dos subsídios da CDE. “Eu diria que a maior parte deles, se não todos, já não fazem sentido”, afirma o executivo, ao criticar a facilidade com que novos custos são repassados para o consumidor de energia elétrica.
Para o executivo da Abrace, o subsídio para o consumidor rural é o mais perverso de todos, já que um mesmo consumidor pode acumular vários tipos de descontos tarifários, a depender da atividade que exerce no campo. Um deles incide sobre o consumo da residência; outro pode incidir sobre o beneficiamento de algum produto, com abatimento tarifário de 40% se estiver conectado em baixa tensão, e de 20% na alta tensão. Além disso, se tiver irrigação, ele ainda tem direito ao subsídio à aquicultura. “Não faz o menor sentido. Eu diria que alguns desses consumidores sequer precisam [desse benefício].”
Santana também questiona a necessidade da manutenção de descontos na tarifa de uso da rede das distribuidoras para geradores de fontes incentivadas, com usinas eólicas e solar fotovoltaicas. Ele lembra que esses empreendimentos tem vendido energia em leilões a preços competitivos nos leilões. Dos cerca de R$ 2 bilhões que a Aneel incluiu recentemente nas cotas da CDE de 2018, destaca o executivo, R$ 500 milhões são resultantes dos descontos na tarifa fio também para o consumidor da energia incentivada, que migrou em massa do mercado cativo para o ambiente livre nos últimos anos.
O crescimento das despesas foi resultante da comercialização de energia no mercado livre por geradores eólicos que reduziram quantidades contratadas com as distribuidoras no ambiente regulado, por meio do Mecanismo de Compensação de Sobras e Déficits. A energia descontratada foi justamente a mais barata, e o consumidor cativo, além de ficar com contratos mais caros, passou a subsidiar a contratação dessa mesma energia pelos que migraram para o ambiente livre.
Uma das emendas ao projeto de lei que cria mecanismos para facilitar a venda das distribuidoras da Eletrobras estabelece a gratuidade para os beneficiários da tarifa social de baixa renda para o consumo até 70 kWh/mês. Atualmente, os descontos são escalonados e incidem sobre o consumo até 60 kWh/mês. Para o presidente da Abrace, a medida vai na contramão do incentivo ao consumo racional de energia e vai aumentar em 20% o custo para todos os consumidores, inclusive os de baixa renda.
Prazo para conclusão de subsídios na CDE. Edvaldo Santana, da Abrace
“Para 2019, existe o risco de o orçamento ser ainda maior, não apenas pelo crescimento do rol de beneficiários e do aumento das tarifas de energia elétrica, que são referência para o valor de diversos subsídios, mas também porque estão sendo discutidas no Congresso medidas que impõem custos adicionais à CDE”, alertou a Abrace, em contribuição apresentada na Consulta Pública 45, quando o governo ainda tentava aprovar a Medida Provisoria 814. Para os cálculos da associação, o impacto imediato para a CDE das despesas incluídas pelo Congresso na MP seria em torno de R$ 4 bilhões anuais, sem incluir o custo adicional para outros encargos e para os anos seguintes, que, segundo a entidade, seriam ainda maiores.
Os grandes consumidores apoiam a retirada gradual dos subsídios da conta setorial. “O prazo de dez anos é suficientemente extenso para que os subsídios hoje custeados pela CDE possam ser amplamente rediscutidos e para que se defina se algum deles deve ser transferido para o OGU (Orçamento Geral da União)”, afirma a Abrace. Para a associação, até que se aprove em lei a limitação dos gastos, deve ser adotado um teto apenas para os subsídios previstos por decreto.
“A gente está de olho sim nessa trajetória explosiva da CDE”, afirma o pesquisador em Energia do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Clauber Leite. O técnico explica que os subsídios na conta de energia são um dos temas prioritários do Idec e está, inclusive, na plataforma disponível para adesão dos candidatos à eleição presidencial.
Leite destaca que a CDE cresceu a partir de 2013, após a Medida Provisória 579, mas um ponto positivo que ele vê na MP é que ela juntou todos os subsídios na CDE, o que deu um pouco mais de transparência sobre o que está sendo pago na conta de luz.
Alguns subsídios poderiam estar no Orçamento da União. Clauber Leite, do Idec
“O problema é que o setor elétrico carrega uma série de políticas públicas, e é justamente isso que temos de questionar”, observa o pesquisador. “Na nossa opinião, muita coisa que está ali, sobretudo na CDE, seria melhor se estivesse no orçamento geral da União, porque a sociedade escolheria as prioridades para esses recursos.”
O representante do Idec pondera que quando se tem número expressivo de subsídios na tarifa, isso acaba criando distorções, sobretudo para o consumidor. O instituto de defesa do consumidor iniciou estudo sobre os destinatários da CDE. Clauber Leite informa que embora todos os dados não estejam disponíveis ainda, há situações bem peculiares, como igreja recebendo subsidio rural, ou outras atividades recebendo esse tipo de benefício.
Ele defende que haja razoabilidade na concessão de descontos, que poderiam agregar outros critérios de enquadramento de beneficiários. É o caso da atividade de irrigação, que poderia levar em conta o critério socioambiental, e o do saneamento, que é “altamente questionável”, porque embute simultaneamente dois subsídios. “Dar subsídio para água e energia elétrica é uma distorção. está dizendo para a pessoa consumir mais água, porque a tarifa é subsidiada”, argumenta Leite.