Afinal, a indenização das transmissoras faz sentido?

Afinal, a indenização das transmissoras faz sentido?

A obrigação de pagar é do poder concedente, diz a lei, e não do consumidor.

Alguns temas polêmicos surgiram em dezembro de 2016. O mais instigante consiste na indenização das transmissoras. A polêmica surgiu do valor definido para ser pago, pelos consumidores, como forma de indenizar os ativos de transmissão que estavam em operação em maio de 2000. O número é de quase R$ 56 bilhões, sendo R$ 20 bilhões dos ativos propriamente ditos e R$ 35,8 bilhões de componentes financeiros. Ele é muito maior do que a receita anual de todas usinas com a venda de energia.

De onde surgiu o número? Ele tem muito de voluntarismo e é sustentado em regras improvisadas pela Portaria 120/2016, do Ministério de Minas e Energia (MME), e em notas técnicas da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A origem do problema decorre, vejam só, da fatídica Medida Provisória (MP) 579/2012. Pela MP, os ativos de transmissão que operavam em maio de 2000 não seriam indenizáveis. Eles compunham o que se denomina de Base Blindada. Apenas os ativos constituídos daí em diante seriam objetos de indenização – de R$ 13 bilhões, que já foram pagos.

Isso gerou muita confusão. As transmissoras ameaçaram não aderir às regras da MP caso ela não fosse modificada, o que motivou um acordo delas com o governo, que se comprometeu a alterar a Lei, e assim foi feito com a edição da Lei 12.783/2013. O caput do seu art. 15 determina que a receita de transmissão deverá considerar, quando houver, os bens reversíveis ainda não amortizados, não depreciados ou não indenizados. O parágrafo 2º do mesmo artigo autoriza o poder concedente a pagar o valor dos ativos considerados não depreciados em 31/5/2000.

 

O número calculado para as indenizações não resiste ao mais simples teste de consistência

 

O texto desses dois dispositivos é um exemplo de como não deve ser redigida uma legislação. Por quê? O caput do artigo é ocioso, pois a receita já considera, obrigatoriamente, os ativos não depreciados. Ele também não teria relação com o parágrafo 2º, que autoriza o poder concedente a pagar. Só em um ponto o parágrafo tem vinculação com o caput, quando especifica os bens reversíveis não amortizados, não depreciados ou não indenizados pelo (novamente) poder concedente. Se é, repita-se, do poder concedente a responsabilidade de indenizar, dele também é a obrigação de pagar, até porque os consumidores já o fizeram por meio da Reserva Global de Reversão (RGR), cujos recursos, utilizados pela Eletrobras sem qualquer transparência ou eficiência, praticamente sumiram.
Porém, como não há palavras vãs na lei, a artimanha consistiu em, por meio de uma norma complementar, passar a obrigação do poder concedente para os consumidores. Com este fim foi publicada a Portaria MME 120/2016, que, em meia página, não deixa barato: define que há valores a indenizar desde 2012 e que serão atualizados e remunerados, entre 2013 e 2017, a uma taxa de quase 15% ao ano, inovando em relação ao que previa a Lei. É dessa remuneração que resulta os R$ 35,8 bilhões.

Mas tal portaria está repleta de ilegalidade. Primeiro, a obrigação de pagar é do poder concedente, que assim foi autorizado pela lei, e não do consumidor, como prevê a portaria. Depois, a portaria trata de cálculo tarifário, uma atribuição da Aneel, conforme estabelecido também em lei, ou seja, uma evidente invasão de competências.

Mais deixemos guardadas as ilegalidades e avancemos na necropsia do número, começando com a seguinte pergunta? Há algum ativo a indenizar? Não. Não há. Até maio de 2000, a energia comprada pelas distribuidoras era valorada pela tarifa de suprimento, que contemplava a energia propriamente dita e o transporte dela. A partir de então, a tarifa de suprimento foi segregada em energia e transmissão. Se a tarifa de suprimento era, por exemplo, R$ 100/MWh, a energia passou a ser R$ 85/MWh e a transmissão R$ 15/MWh.

O detalhe é que os R$ 15/MWh apenas aumentaram a partir de 2001. Ou seja, essa tarifa foi reajustada anualmente pelo IGP-M e não era objeto de revisões, quando as receitas poderiam reduzir mais de 30%, isto na primeira revisão. E não era revisada porque, quando da segregação, os ativos não foram avaliados, sendo blindados até 2015. Como a tarifa de transmissão foi determinada sem ter como base o valor dos ativos, e como ela assegurava o equilíbrio econômico-financeiro, como consta dos próprios contratos de concessão assinados pelas transmissoras, não caberia mais se falar em indenização por amortização ou depreciação.

Em outras palavras, a receita então estabelecida cobriria os custos totais dos ativos que hoje se quer indenizar. É como se o consumidor fosse obrigado a pagar duas vezes, sem contar o que ele já pagou pela RGR, por mais de 40 anos. Logo, não há ativos a indenizar.

Sigamos na necropsia do número.

Pela Nota Técnica da Aneel submetida à audiência pública, os quase R$ 56 bilhões devem ser pagos em 8 anos, o que corresponde a uma receita adicional, para as transmissoras, de mais de R$ 11 bilhões. Aqui vem o primeiro teste da sanidade do número. A receita anual (RAP) das transmissoras, para o ciclo 2016-2017, já é de R$ 12 bilhões, o que significa que a indenização estaria quase que duplicando a RAP. Legal! Mais: o critério de rateio é também impreciso, pois, por exemplo, a estabilidade dos custos de transmissão para várias usinas é só de 10 anos, e a Aneel a considerou infinita.

Isso não é tudo.

O valor do total dos ativos hoje em operação equivale a R$ 95 bilhões. Neste contexto, as indenizações – já realizada e a pretendida – representam 75% do total dos ativos das transmissoras. Com o que se gastaria para indenizar apenas os ativos supostamente não amortizados ou não depreciados, em operação há mais de 30 anos, daria para comprar quase todos os ativos de transmissão existentes. Legal!

Assim, o número calculado para as indenizações não faz sentido, pois sequer guarda relação com a realidade física e não resiste ao mais simples teste de consistência. E não poderia ser diferente, vez que construído de maneira inadequada, dada a falta de cuidado com a legislação e com o valor das coisas. Porém, resultará em um aumento médio de tarifas de 11%, suportados por 8 anos, só que, para alguns consumidores, os custos de transmissão aumentarão mais de 300%. Legal!