As recentes “quebras” de Comercializadoras: problema de mercado ou uma questão puramente bilateral? Como resolver o impasse?

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As recentes “quebras” de Comercializadoras: problema de mercado ou uma questão puramente bilateral? Como resolver o impasse?

Com o temor da quebra das Comercializadoras, a primeira reação do Mercado foi de questionar a efetividade e pedir aprimoramento das regras de Garantias Financeiras.

Não bastassem os problemas macros e já amplamente conhecidos do setor de energia, que se arrastam sem uma aparente solução estrutural ou mesmo conjuntural (vide o caso do GSF e da cíclica sobrecontratação das Distribuidoras), o início do ano de 2019 trouxe mais uma variável de incertezas para o Mercado: a incapacidade de determinadas Comercializadoras em honrar com seus compromissos de venda de energia.

A classe dos agentes comercializadores de energia apresentou um exponencial crescimento nos últimos anos, impulsionado pelo crescimento do mercado em razão da busca do consumidor por preços mais atrativos do que aqueles comparados com o mercado cativo, além do crescimento das mesas de “traders” e dos serviços de consultoria. Segundo os dados da CCEE, até 2017 haviam 191 comercializadoras autorizadas, ao final do mesmo ano eram 219, crescimento de 14%. O ano de 2018, por sua vez, fechou com 270 empresas autorizadas, expansão de 23%.

Dois casos recentes, apontados pelo mercado com fortes indícios de “fraude”, indicam a quebra de duas comercializadoras, com prejuízos milionários e potencial reflexo em cadeia que poderá atingir diversos outros players. Os casos ganharam o noticiário especializado, contaram com manifestações do regulador e do operador financeiro, e deixaram o Mercado em polvorosa com a possibilidade de default do Mercado de Curto Prazo, algo que não é novidade no setor de energia.

Com o temor da quebra das Comercializadoras, a primeira reação do Mercado foi de questionar a efetividade e pedir aprimoramento das regras de Garantias Financeiras.

Aqui fazemos a primeira reflexão: a atual sistemática prevista na Resolução Normativa ANEEL nº 622/2014 funcionou corretamente?

Do ponto de vista de segurança das operações do Mercado de Curto Prazo, entendemos que sim. A função da norma é evitar que operações a “descoberto” impactem todos os demais agentes da CCEE, credores do Mercado de Curto Prazo, restringindo os reflexos apenas às partes contratantes.

Antes do mecanismo atual de Garantias Financeiras – cujo modelo atual teve sua origem com a Resolução Normativa ANEEL nº 531/2012 –, eventual exposição negativa de um agente não coberta por garantias financeiras e não quitada na respectiva liquidação implicava rateio da inadimplência com todos os credores do mercado, com o já conhecido mecanismo de loss sharing.

O não aporte de garantia financeira levava à instauração de procedimento de desligamento, processo demorado e com pouca – ou nenhuma – efetividade para mitigar o prejuízo financeiro dos agentes credores.

Esse mecanismo, que vigeu até 2012, acabou sendo utilizado por agentes de Mercado mal-intencionados (algumas comercializadoras e até mesmo geradores) para praticarem (aí sim sem nenhuma dúvida) verdadeiras fraudes, gerando prejuízos e perdas milionárias para centenas de empresas atuantes no Setor.

Mas com o advento da nova metodologia hoje em vigor, ocorreu o que se chamou de “bilateralização do risco”, uma vez que a CCEE agora possui a prerrogativa de não efetivar o registro dos contratos quando um agente vendedor não possui lastro para suas operações e não aporta a respectiva Garantia Financeira, que é calculada conforme a exposição financeira de cada agente.

Em outras palavras, o agente vendedor que não possui lastro físico ou em contratos, bem como não possui recursos financeiros para aportar, tem o registro de seu contrato de venda de energia não efetivado pela CCEE, transferindo a exposição financeira para sua contraparte.

E nos casos mais recentes das comercializadoras observa-se que o mecanismo funcionou para a finalidade que foi criado: restringir os impactos para a contraparte contratante e evitar um rateio de inadimplência por todos os agentes credores do mercado. Vale destacar que, em um dos casos, o mecanismo sequer chegará a ser utilizado, já que uma das comercializadoras recusou-se a registrar seus contratos de venda, promovendo a bilateralização do risco e dos impactos antes mesmo de registrá-los no âmbito da CCEE.

Mas se o mecanismo funcionou, qual foi o prejuízo causado por essas Comercializadoras, e porque esses casos causaram tanto furor e movimentação no Mercado?

O problema (ou prejuízo) de ambas as Comercializadoras se deu fora do âmbito da CCEE, nos contratos bilaterais que ainda não haviam sido registrados. Trata-se de um prejuízo materializado bilateralmente, decorrente do descumprimento dos Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente Livre – CCEALS firmados, sem impacto inicial no Mercado de Curto Prazo.

O prejuízo, inicialmente, é absorvido integralmente pela contraparte contratante, que perde o contrato de compra e fica exposto, obrigatoriamente, à aquisição de energia no Mercado spot, de acordo com a flutuação do PLD.

Daí vem as duas e mais importantes reflexões: a bilateralização inicial dos riscos entre as contrapartes afasta totalmente o risco de prejuízos em cadeia e ao funcionamento do próprio Mercado?; caso negativo, tal fato é uma questão de adequação das regras ou de comportamento e autogestão do próprio Mercado?

A resposta para o primeiro questionamento é não. Isso porque, por mais que as normas regulatórias impeçam a aplicação do loss sharing por meio da não efetivação de registro de contratos sem lastro, caso a parte compradora não suporte (econômica ou financeiramente) a perda do contrato, haverá um impacto indireto para outros elos da cadeia. Dependendo do tamanho do impacto e da representatividade do comprador/revendedor, poderá sim haver um impacto secundário multilateral com reflexos nocivos para todo o Mercado. Mas reafirmamos: nos casos concretos o mecanismo funcionou muito bem e o os credores do Mercado de Curto Prazo não foram impactados.

Dito isso, passa-se ao segundo questionamento: a mitigação de tal risco passa por um novo aprimoramento de regras ou pela adequação do comportamento dos agentes do Mercado? Sem prejuízo de prestigiarmos a sempre necessária e conveniente adequação/evolução regulatória, nos parece que a questão atual é muito mais relacionada com uma mudança de postura dos agentes econômicos.

Com a abertura e crescimento do Mercado, naturalmente, existe um período de acomodação e depuração em relação aos seus participantes. Com a descentralização da venda de energia das mãos dos grandes e reconhecidos grupos econômicos para uma realidade de pulverização de investimentos – tanto em geração como comercialização –, é necessária mudança de hábitos, e até mesmo de cultura, nas negociações no ACL.

O desejo de crescimento ainda maior do Mercado de Energia no País deve ser acompanhado de uma profissionalização nas análises creditícias, do fortalecimento das garantias bilaterais e na seriedade com que os códigos de ética e compliance das associações do Setor lidam com questões como as que vimos no início desse ano.

A situação de tais comercializadores evidenciou empresas com pouquíssimo tempo de operação no Mercado comercializando montantes de energia elétrica, aparentemente, descasados da robustez de seus ativos.

Ou seja, os casos atuais demonstram que a atuação das comercializadoras precisa ser acompanhada de critérios rígidos de análise creditícia, cláusulas contratuais específicas e bem redigidas para tal situação e atuação firme e coordenada das associações. Tudo, repita-se, no âmbito da relação bilateral entre os agentes que operam nesse mercado, não sendo esperado que haja a criação de novas regras regulatórias que invadam a liberdade ínsita de um mercado (verdadeiramente) livre, com a criação de barreiras que impeçam novos players de operarem no Setor.

É sempre fácil a vida do “engenheiro de obra pronta”. O mesmo pode-se falar dos “advogados de obra pronta”. Mas a questão que se coloca é: realmente a “quebra” das Comercializadoras nesse início de ano foi uma situação nova? Episódio como a alta do PLD em janeiro/2008 – e não só este – não deveriam ter servido de alerta para que medidas de alocação de risco fossem melhor analisadas? A utilização de “contratos padrão” para todo tipo de negociação, será a conduta mais adequada/recomendada em um ambiente no qual se encontram players em situações tão diferenciadas de robustez, histórico, credibilidade, estrutura e até atividade?

Alterações normativas certamente virão. Algumas já estão até mesmo previstas na própria Resolução Normativa ANEEL nº 622/2014 (como o limite operacional e as evoluções previstas na Consulta Pública 33). Mas, apesar de importantes, não nos parece que tais alterações sejam primordiais para que o Mercado de Energia Elétrica funcione de forma adequada e com mais segurança para seus integrantes atuais e para todos aqueles que certamente ainda dele farão parte.

A rediscussão do tema e a efetiva implementação de aperfeiçoamentos bilaterais de gestão de risco são as medidas verdadeiramente necessárias, que precedem o desenvolvimento de qualquer mercado livre robusto e sustentável, como o que se pretende para o País.