Energia pode ter nova onda de migração

Energia pode ter nova onda de migração

Combinação entre preço baixo e abertura de mercado deve incentivar saída de ambiente cativo

A queda do preço da energia no mercado livre, em função da redução da demanda e do aumento da oferta excedente, aliada ao processo de abertura do mercado em curso pelo governo e o Congresso, pode provocar uma nova onda de migração de consumidores para o ambiente livre, quando houver a retomada da atividade econômica, na opinião de especialistas ouvidos pelo Valor. O ambiente livre responde por um terço do mercado total de energia do país e movimenta R$ 134 bilhões por ano.

Nas últimas duas semanas, o preço de liquidação das diferenças (PLD), referência para o preço de energia de curto prazo, está no piso regulatório de R$ 39,68 por megawatt-hora (MWh). Para 2021, já é observada redução de 10% no preço da energia, de acordo com a comercializadora Capitale Energia. Para abril e maio, os contratos estão com valores muito próximos do piso, segundo Rafael Mathias, sócio-fundador da empresa.

Devido ao efeito da pandemia do novo coronavírus na atividade econômica, o Operador Nacional do Sistemas Elétrico (ONS), a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) reviram a projeção da carga do país em 2020, de um crescimento de 4,2% para uma queda de 0,9% em relação a 2019. A consultoria Roland Berger, por sua vez, estima uma redução de 4% do consumo de energia no país em 2020. Nos meses mais agudos de crise, a previsão é uma queda de até 20%, considerando o impacto do isolamento social na Europa.

No racionamento ocorrido entre 2001 e 2002, o consumo de energia caiu cerca de 20%. Devido a medidas de eficiência energética adotadas por indústrias na ocasião, a demanda só voltou ao patamar pré-racionamento seis anos depois. O excesso de oferta no sistema, aliado à regulamentação da figura do consumidor livre, em 2004, gerou um forte movimento de migração para o ambiente livre, na ocasião. Pela legislação da época, poderiam migrar para o mercado livre empresas com demanda mínima de 3 megawatts (MW).

Hoje, o patamar mínimo é de 2 MW. De acordo com portaria publicada pelo Ministério de Minas e Energia no fim do ano passado, o limite será reduzido para 1,5 MW, em 2021, para 1 MW, em 2022, e finalmente 0,5 MW, em 2023. Empresas com demanda a partir de 0,5 MW já podem comprar energia no mercado livre hoje, mas desde que seja de fonte eólica, solar, biomassa ou de pequena hidrelétrica.

Em paralelo, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 232/16, já aprovado pela Comissão de Serviços de Infraestrutura da Casa, prevê a liberação total do mercado, inclusive para consumidores residenciais, em três anos e meio.

“Não tenho dúvida de que isso [onda de migração] vai se repetir”, disse Carlos Faria, presidente da Associação Nacional de Consumidores de Energia (Anace).

“Se superarmos a crise e mantivermos o arcabouço legal, as perspectivas para o mercado livre são bastante promissoras”, afirmou o presidente da Associação Brasileira dos Comercializadoras de Energia (Abraceel), Ricardo Medeiros.

Para o presidente da Tradener, primeira comercializadora autorizada a atuar no país, Walfrido Ávila, a crise atual é uma boa oportunidade para se pensar na dinâmica de abertura total do mercado. “O governo desembolsaria menos dinheiro se pudesse tirar o setor dos problemas dessa crise”, disse o executivo, que também enxerga nas negociações bilaterais uma vantagem do ambiente livre.

Na visão de um especialista que pediu anonimato, a redução do mercado cativo por causa da migração para o ambiente livre, assim como pelo crescimento da geração distribuída, é uma preocupação válida das distribuidoras de energia e que precisa ser levada em conta na reforma do setor elétrico. “Tem que haver uma transição suave para o novo modelo”, afirmou.

Um problema levantado por especialistas é como ajustar a carteira das distribuidoras, que, estimuladas por projeções do governo em anos anteriores, já contrataram um volume expressivo de energia para os próximos anos. Eles defendem que esses contratos legados sejam resolvidos, porém sem dar margem à judicialização.

Essa preocupação também é indicada pelo presidente do Instituto Acende Brasil, Claudio Sales. Segundo ele, o cenário de sobrecontratação das distribuidoras reflete o quanto a regulação do setor precisa ser aperfeiçoada. Um exemplo disso, explicou, é a necessidade de separar a atividade do “fio” da distribuidora da comercialização de energia.

Sales, porém, é cético com relação a um novo “boom” de migração no setor. “Hoje está tudo meio parado. O PLD está no piso. Mas que segurança se tem com relação a essa perspectiva de preço?”, questionou o especialista.

Ávila também acredita que o mercado livre, assim como o regulado, terá uma alta de preços no curto prazo. Segundo ele, a disparada do dólar e o aumento dos insumos deverão encarecer projetos do mercado livre de fontes renováveis, como eólica, solar e pequenas hidrelétricas. “Não vejo como os dois mercados não passarem por uma subida de preços”.