Entre a eficiência energética e o direito à privacidade

Entre a eficiência energética e o direito à privacidade

Em 12 de junho, a Comissão de Serviços de Infraestrutura (CI) aprovou o Projeto de Lei do Senado nº 356/17 (PLS 356/17), que busca incentivar a implantação de redes elétricas inteligentes, os chamados smart grids. Há ao menos outros dois projetos em tramitação no Congresso – o PL 3337/12 e PLS 84/12 -, mas o que foi recentemente aprovado pela CI do Senado parece seguir bom caminho para sua aprovação.
São inúmeras as vantagens decorrentes da implantação dos smart grids. De forma genérica, redes inteligentes permitem a integração de tecnologias, produtos e serviços inovadores e disruptivos – tais como sensores, microprocessadores, medidores, instrumentos de telecomunicações e outros dispositivos -, que possibilitam um melhor gerenciamento e monitoramento de toda a rede elétrica, indo desde a usina de geração de energia até o interior de casas residenciais.
De modo específico, algumas vantagens saltam aos olhos, tais como a instalação de sensores em diversos pontos da rede de distribuição de uma concessionária com o fim de detectar o furto de eletricidade. Ou ainda o uso de vias digitais de comunicação entre geradora e transmissora, ou entre distribuidora e consumidor, otimizando a operação da rede e contribuindo para o aumento da eficiência energética.
Mas isso não é tudo. Smart grids possibilitam que redes de eletricidade, autonomamente, identifiquem e corrijam gargalos e problemas temporários na rede (tecnologia self-healing). Viabilizam, também, a implantação dos chamados micro grids, sistemas descentralizados nos quais grandes consumidores – indústrias, polos petroquímicos, fábricas – podem valer-se de uma combinação de fontes de energia, tais como painéis solares e baterias, para atender suas demandas por eletricidade, dependendo cada vez menos do fornecimento oferecido pela concessionária local.
Em especial, uma maior troca de informações entre a concessionária de distribuição de eletricidade e o consumidor, auxiliada pelo uso de medidores inteligentes e pela difusão da Internet das Coisas (IoT na sigla em inglês), traz um potencial disruptivo elevado, já que a interação passa a ocorrer em tempo real e torna-se mais fácil prever a demanda e tornar o consumidor consciente da sua relação com a eletricidade.
No fim do dia, tem-se uma operação do setor otimizada, resultando em eficiência energética, menos desperdício de energia e retardamento de investimentos em nova infraestrutura, em favor do meio ambiente.
Contudo, a implantação de smart grids e o uso de medidores inteligentes traz consigo uma série de questões jurídicas e regulatórias, as quais ainda precisam ser adequadamente endereçadas pelas autoridades governamentais.
Pelo lado regulatório, a Aneel ainda não reconhece, no cálculo da tarifa de energia, todos os investimentos em tecnologia e modernização da rede feitos pelas distribuidoras. Sem esse reconhecimento, há pouco incentivo para que as concessionárias abracem a causa. Ainda, no caso de um investimento em smart grids feito por uma transmissora, mas que gere efeitos benéficos a uma distribuidora, não há consenso quanto à forma de reconhecer financeiramente este investimento.
Além disso, medidores inteligentes são caros e viáveis economicamente apenas para grandes consumidores. Uma difusão em massa dos medidores inteligentes ainda não foi verificada, mesmo com a regulamentação da tarifa branca pela Aneel – regime tarifário caracterizado pela variação do preço da eletricidade em razão dos períodos de pico ou fora de pico.
Pelo lado eminentemente jurídico, o envio de informações sobre o consumo de um bem essencial para a distribuidora de energia adentra em área extremamente sensível ao cidadão: sua privacidade.
Com medidores inteligentes transmitindo em tempo real os dados sobre consumo de eletricidade de uma casa, aliada à cada vez mais difundida IoT, é possível estimar quando as pessoas de uma residência acordam, quando saem de férias, se compraram eletrodomésticos novos ou se ficaram vendo TV até tarde da noite, por exemplo.
Com a transmissão destes dados pela internet, surge o risco de intercepção da transmissão dos dados por hackers, exigindo investimentos em segurança cibernética. Para ficar em um exemplo apenas, os dados relacionados aos hábitos de consumo de eletricidade poderiam ser comercializados com empresas de publicidade, com o intuito de oferecer anúncios personalizados, na hora certa. Isso tudo, sem que o consumidor saiba ou queira.
Recentemente, foi publicada a Lei Geral de Proteção de Dados, nº 13.709/18, disciplinando a forma como dados pessoais devem ser tratados, com vistas à sua proteção. A lei estabelece, em síntese, quais dados podem ser tratados, quem pode coletá-los e processá-los, por quanto tempo o agente pode manter tais dados e como o consentimento é dado pela pessoa natural, permitindo o tratamento de dados a ela relacionados.
A despeito da discussão quanto às esferas de aplicação da Lei nº 13.709/18, vislumbra-se sua aplicação ao setor elétrico – considerando que “dados energéticos” estariam contidos em “dados pessoais” -, em especial com a transmissão, coleta e tratamento de dados relacionados ao consumo de eletricidade.
Para o consumidor de eletricidade, é fundamental que ele não apenas saiba como seus dados estão sendo coletados e armazenados, mas que também tenha acesso aos dados e possa voltar atrás no consentimento anteriormente dado. Porém, deve-se também ter em mente que os benefícios oferecidos por medidores inteligentes dependem intrinsecamente da quantidade e frequência dos dados coletados.
Para além do tom alarmista, faz-se necessário que as autoridades governamentais e a sociedade discutam qual nível de privacidade – direito fundamental, diga-se, fazendo com que a aplicação de qualquer norma tendente a limitar tal direito seja interpretada de forma restritiva – é desejável, num contexto em que o acesso aos dados relacionados ao consumo de eletricidade vem se tornando ferramenta indispensável na promoção de eficiência energética.
Um direito absoluto à privacidade pode enfraquecer o objetivo da eficiência energética – extremamente relevante para o combate à degradação ambiental -, em detrimento de interesses coletivos, igualmente legítimos.
Rosane Menezes e Lucas Noura Guimarães são, respectivamente, sócia da área de Infraestrutura e advogado da área de energia do Madrona Advogados.