Que interesse público é esse?

Que interesse público é esse?

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) precisa rever a decisão de permitir que a Âmbar Energia substitua quatro usinas vencedoras do Processo Competitivo Simplificado (PCS) por unidade que já se encontra instalada. Essa seria uma saída honrosa para limitar os danos relativos ao processo e, ao mesmo tempo, resgatar a confiança da sociedade no órgão de fundamental importância para o país em geral e o setor elétrico em particular.

Sagradas vencedoras do PCS 01/2021, as quatro usinas não cumpriram com as obrigações editalícias e contratuais. Para seu resguardo, propuseram uma medida cautelar perante a Aneel solicitando a substituição do atendimento da entrega da energia contratada por um terceiro, estranho à relação e, em conformidade com as regras do PSC, impedido de assumir tais obrigações.

A medida cautelar não poderia ter sido aceita pelo regulador pelo simples fato de que, em tais condições, o empreendedor desrespeitaria as regras do próprio PSC, abrindo um precedente extremamente perigoso para o setor elétrico brasileiro.

Vale observar que, conforme as diretrizes do Ministério de Minas Energia (MME), baseadas inclusive nos estudos do planejamento setorial, os leilões de reserva, nos termos de sua regulamentação, podem ser direcionados à energia nova e/ou existente a critério do Poder Concedente. No caso dos contratos resultantes do PCS, a energia requerida necessariamente haveria de ser proveniente de novos empreendimentos, portanto, nova.

Nesse contexto, causou surpresa o entendimento da Aneel no sentido de que, para o atendimento do interesse público, não importaria se a energia injetada fosse nova ou existente desde que integrada ao sistema, ignorando, por completo, as diretrizes defendidas e fixadas pelo Poder Concedente.

Ademais, não podemos deixar de frisar uma evidente inversão de valores em nome do interesse público, como trazida pela decisão do regulador. Isso porque o relator do processo, o diretor Efrain Cruz, em seu voto, ressaltou a necessidade de ser desconsiderada a literalidade do edital quanto à especificação da energia, além de defender a possibilidade de o edital ser ignorado quando houver entrega de produto superior.

Ora, não se trata de produto com especificação superior a ser tolerada, mas sim de cessão de contrato, com a substituição do produto de um fornecedor pelo de outro, com a mesma especificação. Ou seja, o que se tenta fazer é a substituição do agente vendedor e não do produto, o que resta expressamente vedado pelas regras da licitação e pelas diretrizes do governo federal.

Interessante observar ainda que a tônica do voto é no sentido de que a solução adotada atende ao edital porque agrega energia ao sistema e que não caberia ao regulador discutir a necessidade ou não dessa energia. Nesse sentido quer a decisão, na ilusão de defesa do interesse público e do consumidor, asseverar-se altamente vantajosa e necessária. Que engodo!

Diante de tal colocação, cabe aqui perguntar: que interesse público é esse que desconsidera a vontade do Poder Concedente, ignora a legislação aplicável aos leilões de energia, tolera o inadimplemento sem qualquer consequência e descumpre contratos como se essa fosse a regra?

A afronta ao Poder Concedente juntamente com as infrações ao edital e o total descumprimento do contrato por si só são suficientes para reverter a decisão e, neste contexto, a ginástica matemática e os argumentos improváveis e contestáveis lançados para alcançar a modicidade tarifária com as benesses da inflexibilidade não merecem comentários ou rebatimento, mas sim seu total afastamento. Mais uma vez devemos indagar: que interesse público é esse que decide em favor do empreendedor notoriamente inadimplente se apoiando numa suposição de eficiência e economicidade em detrimento do consumidor?

Portanto, neste momento, só resta à Aneel rever sua decisão e revogar a medida cautelar concedida aos interessados em detrimento do interesse público e suspender, de imediato, todos os efeitos do Despacho nº 1.872, de 12 de julho de 2022, permitindo que seus próprios órgãos de fiscalização promovam as medidas punitivas e necessárias para o caraterizado inadimplemento contratual das interessadas, mitigando os danos que, caso contrário, seriam suportados pelos consumidores.

* Mariana Amim é diretora de Assuntos Técnicos e Regulatórios da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (Anace).

** Artigo publicado no Correio Braziliense em 22/08/22.