Subida da Serra, um gasoduto sob disputa

Subida da Serra, um gasoduto sob disputa

Questões técnicas que envolvem a construção do gasoduto Subida da Serra colocam de um lado os anseios empresariais do Grupo Cosan e do outro as preocupações daqueles que temem o risco de o estado de São Paulo se transformar em uma ‘ilha de gás’

Por Felipe Salgado

O gasoduto faz parte de uma arquitetura ambiciosa da Cosan: o Subida da Serra interligará o Terminal de GNL no Porto de Santos, com construção autorizada, e futura operação da TRSP, subsidiária da Compass – controlada pela Cosan -, à malha de distribuição da Comgás, empresa do mesmo grupo, que receberá a injeção do gás regaseificado. O motivo da disputa é se o Subida da Serra é um gasoduto de transporte ou de distribuição. Como veremos a seguir, isso vai muito além da simples nomenclatura.

A Compass também está desenvolvendo o projeto do Rota 4, que prevê, além do gasoduto de escoamento da produção do gás do pré-sal da Bacia de Santos para a Baixada Santista, com capacidade de 15 MMm³/dia, a instalação de uma UPGN naquela região, que será, em princípio, interligada ao gasoduto Subida da Serra.

Embora a construção do Subida da Serra tenha sido autorizada pela Arsesp como um gasoduto de distribuição, a própria agência reguladora paulista admite, na Nota Técnica Final 0030-2019, que ‘o projeto tem características operacionais que o assemelham a um gasoduto de transporte, com 31,5 km de extensão em tubos de aço de 20 polegadas, pressão de 70 bar, e capacidade de movimentar até 16 milhões de metros cúbicos de gás por dia’.

Em ofício enviado à ANP, a ATGás (Associação de Empresas de Transporte de Gás Natural por Gasoduto) considera que a agência federal deu aval para a construção do Terminal de GNL pela TRSP sem levar em conta o contexto mais amplo de sua integração à cadeia de valor do gás natural. ‘O trajeto percorrido pelo Gasoduto Subida da Serra e o Gasoduto do Terminal deve ser tratado como um gasoduto de transporte único’, diz o documento.

Segundo apuração da Brasil Energia, o Subida da Serra encontra resistência de parte do mercado que teme que a Cosan, por meio de sua complexa estrutura societária, coloque em marcha uma ‘engenharia’ de verticalização empresarial nos moldes de uma ‘Petrobras paulista’, o que sugere um monopólio regional capaz de ilhar o mercado de São Paulo do resto do país, que, em tese, poderá solapar as premissas de abertura e competitividade tão difundidas em torno do novo mercado de gás.

A Arsesp, por sua vez, alega que o discurso sobre monopolização é equivocado e até infundado à medida que o mercado livre já é regulamentado em São Paulo há anos. Para o regulador, o Subida da Serra nada mais é do que um reforço para ampliar a capacidade de distribuição de uma rede já existente e operada pela Comgás.

Procurada para se pronunciar acerca dos fatos e versões aqui relatados, a Cosan, por meio da Comgás, se manifestou através de um posicionamento oficial que pode ser lido na íntegra. Basicamente, a companhia reforça o entendimento da Arsesp de que o reforço da rede não será destinado ao transporte, mas ao abastecimento do consumidor final, o que caracteriza o Subida da Serra como um gasoduto de distribuição.

Fonte: Cosan

Gasoduto de que, afinal?

Antes da Lei do Gás entrar em vigor, estava vigente a Lei 11.909/2009, cujo inciso XVIII do Artigo 1º definia gasoduto de transporte como aquele que realizava ‘movimentação de gás natural desde instalações de processamento, estocagem ou outros gasodutos de transporte até instalações de estocagem, outros gasodutos de transporte e pontos de entrega a concessionários estaduais de distribuição de gás natural, ressalvados os casos previstos nos incisos XVII e XIX do caput deste artigo, incluindo estações de compressão, de medição, de redução de pressão e de entrega (?)’.

Sob a ótica da nova Lei do Gás (14.134/2021), o ponto crucial que envolve o Subida da Serra é o inciso VI do Artigo 7º, um dos motivos pelo qual a votação do então PL do Gás fora adiada por diversas vezes na Câmara dos Deputados antes de sua aprovação final. Ali está disposto que será considerado como gasoduto de transporte àquele que atender às características técnicas de diâmetro, pressão e extensão que superem os limites estabelecidos pela ANP – a agência federal informou que, em face da nova lei, as especificações ainda não foram definidas para regulamentação, e que, portanto, não iria não se manifestar sobre o caso do Subida da Serra.

Ainda sob a perspectiva do inciso VI do Artigo 7º, a Arsesp declarou em nota que, em sua interpretação, a nova lei indica que ficam preservadas as classificações de gasodutos em implantação. Além disso, o projeto, quando aprovado, no âmbito da 4ª Revisão Tarifária Ordinária da Comgás, em 2019, estava submetido à lei vigente à época (11.909/2009), disse o regulador paulista.

Diante desse vácuo regulatório, pode se constituir um novo alvo de pressão por parte de grupos de interesse. Menos de uma semana após a sanção presidencial da Lei 14.134/2021, durante a elaboração desta reportagem e em meio ao debate sobre o Subida da Serra, o deputado federal Ricardo Barros (PP-PR) apresentou o PL 1.425/2021, que visa alterar o inciso VI do Artigo 7º da Lei do Gás sob a justificativa de que ‘alguns agentes manifestaram preocupação com relação à possibilidade de estabelecimento de critério de classificação de gasoduto de transporte que pudesse ensejar conflito com gasoduto classificado como de distribuição’.

No texto, o deputado propõe que um gasoduto de movimentação de gás natural deverá ser classificado como gasoduto de transporte se tiver pressão máxima de operação igual ou maior a 30 kgf/cm² (29,42 bares). O valor estipulado representa, segundo o parlamentar, a pressão de quase todos os 48 gasodutos de transporte em operação no país. ‘Em geral, a legislação limita-se a estabelecer que os gasodutos de transporte são gasodutos de alta pressão’, diz o texto. Em teoria, a proposta inviabilizaria o Subida da Serra, cuja pressão prevista é de 70 bar.

Entre o interesse geral e particular

No ofício da ATGás, anterior à sanção da Lei 14.134/2021, a associação baseou o seu pleito no inciso VII do Artigo 6º da Lei do Petróleo (9.478/1997), que define transporte como ‘movimentação de petróleo e seus derivados ou gás natural em meio ou percurso considerado de interesse geral’, para embasar a sua defesa de que o Subida da Serra é um gasoduto de transporte. No documento, a categoria ‘interesse geral’ é grifada na descrição do inciso para enfatizar o entendimento da associação.

Segundo a assessora jurídica da Anace (associação que reúne 36 consumidores de energia), Mariana Amim, o imbróglio do Subida da Serra tem origem, justamente, em uma discussão semântica entre o que é serviço de gás canalizado, o que é interesse público e o que é interesse privado. Para a advogada, o argumento da Cosan está assentado na premissa de que se o gasoduto ‘nasce e morre’ dentro do mesmo estado, não haveria interesse de terceiros, como se apenas a sua localidade determinasse a sua relevância e não a sua função.

Em sua análise, contudo, como não ocorrerá distribuição de gás no trajeto do Subida da Serra, mas a interligação entre dois pontos, a sua função estaria desvirtuada. Por isso, afirma, a posição da Anace não é de oposição à construção do gasoduto, mas à sua classificação como um ativo de distribuição, que, em sua opinião, ‘provocará distorções concorrenciais na oferta mais competitiva de gás para o consumidor não apenas em São Paulo, mas em todo o Brasil’.

A Comgás, por sua vez, reconhece, em sua manifestação, o Subida da Serra como um gasoduto de distribuição nos termos firmados no contrato de concessão assinado junto ao Governo do Estado de São Paulo. ‘O projeto visa ampliar a capacidade de distribuição da Comgás na área que compreende a Região metropolitana de São Paulo e a Baixada Santista, de maneira alinhada à expectativa de crescimento do consumo de gás natural. A iniciativa tem como base a segurança no fornecimento a consumidores de todos os segmentos atendidos pela Comgás – industriais, residenciais, comerciais, automotivos, de cogeração e termelétricos’, informou a empresa à Brasil Energia.

Diante de tal cenário, a Abiquim, representante do setor químico, o maior consumidor industrial de gás do país, considera que a proposta do gasoduto, tal como está, não tem a finalidade de atender o consumidor final, mas apenas a concessionária de distribuição, o que engendra um conflito entre os interesses público e particular.

Para Fátima Coviello, diretora de Economia e Estatística da entidade, a dúvida é se a redução de tarifa assegurada pela Arsesp será, de fato, cumprida, e se o custo da construção do empreendimento será incorporado à conta do consumidor como garantia de remuneração. Somado a isso, a preocupação reside no fato de que se for um gasoduto de distribuição, o Subida da Serra não poderá ser compartilhado, mas a sua utilização terá que ser negociada com a Comgás, o que lhe dará enorme poder de barganha.

Em sua Nota Técnica Final 0030-2019, a Arsesp garante ‘que todo o risco do investimento recai sobre a concessionária e não sobre o usuário’ e que a ‘concessionária repassará descontos aos usuários que ultrapassam os montantes investidos na obra ainda no ciclo tarifário’.

Fonte: Ofício da ATGás enviado à ANP

São Paulo, ‘ilha de gás’?

De acordo com a ATGás, Abrace, Anace, Abiquim e Abividro, que assinaram junto com o IBP, a Abal e Aspacer o documento intitulado ‘Verticalização do gás em São Paulo: Gasoduto Subida da Serra e terminal de GNL’, o fluxo de transporte interestadual de entrada e saída de gás será cortado, já que não é possível injetar a molécula no sistema de transporte a partir de um ativo de distribuição. Desta forma, o gás movimentado não poderá sair do sistema de distribuição da Comgás e ser vendido para outros estados, isolando a área de concessão da distribuidora do resto do país.

Como consequência direta de ‘desligar’ o estado de São Paulo da rede e de retirar do sistema um volume de até 16 milhões de m³ de gás, afirmam as entidades no manifesto, o custo do transporte não pago pelos consumidores paulistanos será repassado aos consumidores dos demais estados, o que poderá ocasionar desequilíbrios estruturais à rede de transporte e ao mercado de gás.

Para reforçar a tese de que não se trata de um gasoduto de distribuição, mas de transporte, as entidades apontam as semelhanças entre o traçado e o orçamento dos projetos do gasoduto de transporte Cubatão – Gasan/SP, previsto pela EPE em seu Plano Indicativo de Gasodutos (PIG), e o gasoduto Subida da Serra – o custo estimado do Gasan/SP é de R$ 538,3 milhões, enquanto o orçamento do Subida da Serra é de R$ 473,5 milhões (valor estimado em abril de 2019, sem correção monetária). Os dois projetos, conforme as ilustrações a seguir, contemplam a instalação de uma UPGN.

Fonte: EPE / Ofício da ATGás enviado à ANP

Interesses do Governo de São Paulo

Do ponto de vista econômico, o projeto da Compass está alinhado aos interesses do governo paulista em alavancar o consumo pela disponibilidade de grandes volumes de gás natural a preços competitivos. Afinal, o gás que que será importado via GNL terá um custo mais acessível do que o gás escoado pelo Gasbol – sobre este incide o ICMS do Mato do Grosso do Sul – e aumentará a arrecadação do estado, além de prover maior segurança de abastecimento.

Sem a cobrança do ICMS do estado vizinho e da tarifa de transporte, o consumidor paulistano terá, obviamente, acesso a um recurso energético mais barato. Já a Compass deve seguir em direção aos leilões de térmicas movidas a gás através de seus braços de geração e comercialização de gás e energia elétrica.

Mas enquanto São Paulo obtém vantagens imediatas, argumenta um interlocutor, quem perde na ponta são os produtores interessados em comercializar o gás dentro do próprio estado e, em última instância, o mercado brasileiro. Isso porque, em essência, o que está colocado é uma dicotomia entre um modelo de mercado nacional assentado nos fluxos de transporte e uma concepção de mercados regionais conectados por capilaridade entre as malhas dos distribuidores.

Para além das fronteiras geográficas do estado de São Paulo, o apetite da Cosan pelos ‘espólios’ da Petrobras, cujo monopólio foi colocado no corner pelo Cade, no TCC do Gás, sugere uma estratégia de expansão nacional. O avanço da Compass sobre a Gaspetro, subsidiária da Petrobras que detém participação em 19 distribuidoras de gás, pode ser a ponta de lança de sua empreitada para erigir um novo gigante de gás no mercado brasileiro. Em meio a tudo isso, bate à porta o IPO da Compass.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

Confira a notícia completa em: Subida da Serra, um gasoduto sob disputa – Editora Brasil Energia