Um futuro conciliatório para as grandes hidrelétricas

Um futuro conciliatório para as grandes hidrelétricas

Ivo Leandro Dorileo*

No centro do planejamento do sistema elétrico brasileiro sempre estiveram as hidrelétricas. Com virtudes próprias as grandes usinas fazem parte dos processos decisórios, ao longo dos anos, e respondem às necessidades do setor e da sociedade brasileira consumidora de eletricidade. Com efeito, Luciana Paz, Pinguelli Rosa e Marcos Freitas, da COPPE, UFRJ, expressaram, em 2004, esta importância estratégica para o país: “… A dependência da energia gerada por grandes usinas é uma característica da matriz nacional, e suas raízes históricas são tão arraigadas que, somadas à inconteste vocação hídrica, levam a uma continuidade da sua inclusão no planejamento das gerações presentes e futuras”.

Com acerto, as variáveis ambientais tem sido empregadas frequente e obrigatoriamente nos projetos hidrelétricos de expansão, ao priorizarem-se tópicos socioambientais essenciais para a consecução de obras. E, obviamente, no bojo do planejamento indicativo, de acordo com o atual Plano Decenal de Expansão – PDE 2029 (EPE, 2019) apresentam-se as premissas básicas: (i) deve-se garantir o fornecimento ao mercado informação útil para empreendedores que tomam decisões de investimento sob incerteza, notadamente sobre fatores relevantes para a evolução da composição da matriz de geração elétrica no tempo; e (ii) o plano deve permitir a análise das condições de adequabilidade de suprimento sob diferentes cenários futuros possíveis. Está claro que as visões de futuro incluem quais as tecnologias garantirão o abastecimento e seus custos de operação, a capacidade de potência, o fator de capacidade, a disponibilidade, a flexibilidade, o controle da geração, as condições macroeconômicas e as indicações dos temas socioambientais para análise.

Neste aspecto, na sua forma mais nobre, os benefícios líquidos das grandes hidrelétricas para a sociedade podem ser assegurados com a valorização de um potencial elevado, de um recurso renovável e socialmente significativo. Mas, longe de uma decisão monocrática, medidas concretas em políticas energéticas só podem ser tomadas a partir de resultado de participação coletiva. O mérito do diálogo estará, neste caso, não na inquietude ecológica, mas, na demonstração da possibilidade de uso racional dos recursos, considerando todos os fatores que conduzem a demanda social por energia e as formas de conversão energética das fontes.

Esta visão holística pode ser amplamente aprimorada, oferecendo a oportunidade aos grandes empreendimentos de se efetivarem com preocupações estratégicas definidas com metas e arranjos factíveis do ponto de vista econômico e ambiental, mas, que atendam a compromissos de uma política energética, de recursos hídricos e ambiental integradas, incorporando objetivos em uníssono, introduzindo flexibilidade, adaptabilidade e outras exigências presentes pela restrição de recursos e pela permanente mudança global. O modo como vem sendo realizado o planejamento energético no país fundamenta a adoção de novas estratégias para sustentar o meio ambiente, as populações, e para reduzir a poluição e a produção de resíduos, além de, sob o ponto de vista da oferta de energia elétrica, explorar conscientemente os recursos naturais, sobretudo os da Amazônia.

Uma das formas mais aceitáveis para o setor é a realização de exercícios de planejamento de caráter indicativo e descentralizado, de longo prazo, como o Planejamento Integrado de Recursos – PIR por bacias hidrográficas.

O exemplo: transformar a Amazônia numa província hidroenergética traz à tona o confronto planejamento energético versus planejamento ambiental, e a incapacidade institucional na escolha das estratégias adequadas, condicionando análise técnica minuciosa de variáveis tecnológicas, econômicas, ambientais e sociais para agregar os benefícios às populações junto ao e distantes do empreendimento de forma justa e equilibrada. Por outro lado, as grandes usinas erigidas em seus rios constituem, hoje, um dos pontos centrípetos da interligação Norte, Nordeste e Sudeste/Centro Oeste do Sistema Interligado Nacional. O PIR é uma resposta-contribuição para o equacionamento do impasse existente entre o desenvolvimento energético e a preocupação ambiental.

De maneira geral, os projetos indicativos de usinas hidrelétricas traspassam as metas dos planejamentos estaduais isoladamente, e, muitas vezes, além das vocações regionais. Na realidade, estão em jogo “as grandezas nacionais”, como as riquezas do subsolo e do território, onde se situam as grandes usinas e cujas topologias destes aproveitamentos hidrelétricos não devem admitir, claro, a naturalização dos efeitos ambientais sobre os ecossistemas. Estes projetos devem levar em conta a participação coletiva, os estudos de inventário e de viabilidade dos empreendimentos de geração elétrica que compreendam tanto os economicamente mais atraentes como os de interesse estratégico, além dos planos de recursos hídricos das bacias em que estarão localizadas as usinas, e os deveres de proteção e conservação ambiental.

Contudo, as hidrelétricas estratégicas possuem reservatórios de regularização de vazão, cujo benefício maior está na energia total armazenada pelo reservatório, e compõem a cesta de oferta de projetos com os melhores recursos de operação.

No horizonte decenal de 2029 do PDE, a oferta contratada acumulada em usinas hidrelétricas soma 851 MW até 2023, e estima-se a adição de 1.674 MW para 2029 – esta como a data provável de entrada em operação de hidrelétricas em estágio de estudo de viabilidade, e cuja indicação no horizonte decenal se dará pelo critério de competitividade econômica. A maioria operará com turbinas axiais tipo bulbo ou Kaplan, sem aproveitamento do potencial gravitacional – uma sinalização forte do planejamento para o aumento das usinas a fio d’água. Além da possibilidade de implantação de usinas reversíveis e de motorização adicional em UHEs existentes. No cenário de referência da expansão 2029 a participação hidráulica cai para 49,0%, sendo que o suprimento do sistema terá que contar com fontes eficientes para operar por longos períodos, principalmente nos meses de maior demanda quando o parque gerador hidrelétrico apresentar baixa disponibilidade. Na expansão de referência, segundo o PDE, as fontes que farão esse papel são as termelétricas a gás de ciclo combinado e a carvão. Tudo isto num cenário (de referência do PDE) de crescimento da demanda de 3,6% ao ano e necessidade de aproximadamente 120 GWmédios em 2029.

Assim, levando em conta as restrições dos estudos de planejamento, suas simulações, simplificações metodológicas necessárias aplicadas nos modelos oficiais e avaliações de cenários mais críticos, deve-se assinalar mais importante o papel das hidrelétricas, especialmente as com capacidade de regularização de vazão, na modulação da oferta e no acompanhamento da curva de carga, garantindo a sinergia que o sistema precisa para ter uma operação econômica e eficiente (EPE, 2019).

Portanto, vamos agir sob uma aura de legitimidade e legalidade; sem estigmas, sem repetir erros. Vamos considerar no planejamento cenários dinâmicos que levem em conta, além dos fatores socioeconômicos, os hábitos de uso, a eficiência energética, a preservação ambiental, os custos sociais, os custos completos, a conservação dos recursos e que se conviva com as várias formas de geração de energia (com custos e riscos díspares). Vamos ponderar sobre um marco regulatório que produza efeitos sinérgicos entre as políticas energéticas, de recursos hídricos e ambiental, como fundamental para assegurar a tomada de decisões sistêmica e equilibrada.

*Ivo Leandro Dorileo é Presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético