Privatizar é preciso

Privatizar é preciso

Na forma proposta, a venda da Eletrobrás desperdiçará a oportunidade de revisão desse marco regulatório.

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Desde que o Governo manifestou a intenção de “democratizar o capital” (sic) da Eletrobrás, a notícia movimentou os bastidores do Congresso, o mercado de ações e os agentes do setor de energia. Afinal, trata-se da venda de ações da maior holding de energia elétrica da América Latina, uma das cinco maiores geradoras hidrelétricas do mundo. Com 239 usinas e 47 GW instalados, a empresa representa 31% da capacidade de geração do país e 47% do sistema de transmissão, com 70 mil km de linhas. A maior empregadora do setor elétrico brasileiro, com mais de 20 mil funcionários. Além disso, apenas entre 2012 e 2016, mais de R$ 45 bilhões foram investidos em geração e transmissão e outros R$ 30 bilhões são previstos para o próximo quinquênio.

Todavia, tomada pelos mais diversos interesses e apresentando inúmeras ineficiências na gestão, há anos a empresa está aquém do que poderia oferecer para o país. Os efeitos são observados em seu endividamento e no valor de mercado que, apesar da melhora nos últimos meses, ainda são proporcionalmente inferiores a empresas de referência do setor. Exemplo disso é a comparação entre seu valor de mercado, em torno de R$ 30 bilhões, e seu valor patrimonial, R$ 46 bilhões. Portanto, a FIESP entende que privatizar a Eletrobrás não é apenas desejável, mas fundamental para se recuperar a capacidade de investimento e o protagonismo de seus ativos na matriz elétrica nacional, além de promover mais competição no setor.

Entretanto, é possível fazer a coisa certa do jeito errado. E o modelo de privatização ventilado até o momento pelo Governo é exemplo disso. Alguns pilares sustentam o modelo divulgado:

  1. a) desestatização por meio de emissão de novas ações, sem que a União acompanhe a compra;
  2. b) descotização das usinas hidrelétricas alcançadas pela Lei 12.783/2013, incluindo pagamento de bônus pela nova outorga;
  3. c) manutenção de Golden Share e direito de indicação do presidente do Conselho de Administração; e
  4. d) criação de nova estatal controladora da Eletronuclear e Itaipu.

O modelo está errado por diversos motivos. Primeiro porque fere princípios jurídicos e regulatórios, ao romper contratos de concessão com vigência até 2043 e propor a venda de usinas sem o devido processo licitatório (art. 175 da CF 88), dando direito de preferência a um ente privado. Segundo a descotização como instrumento de arrecadação apenas onera as tarifas dos consumidores, e implica na “re-amortização” de investimentos já pagos (e repagos) ou indenizados pelo consumidor. Terceiro, o modelo proposto não coopera com aumento da concorrência no setor, ao criar um agente privado com grande poder de mercado. E, por fim, a manutenção de Golden Share com direito a indicações apenas deprecia o valor da companhia.

A privatização da Eletrobrás e a descotização das usinas só interessará ao consumidor no contexto de novo paradigma no marco regulatório do setor elétrico, com mais mecanismos de mercado e menos presença do Estado. Enquanto o centro das atenções está em se desfazer os acontecimentos de setembro de 2012, em nossa visão o que precisa ser refeito é o modelo de 2003. Desde 2003, uma mentalidade estatizante predominou sobre o setor, com planejamento centralizado, serviços extremamente regulados, operação – muitas vezes – discricionária (por exemplo, geração fora da ordem de mérito), concessão indiscriminada de subsídios e uso eleitoral da política tarifária tornaram os preços sem aderência com a realidade. É preciso mudar de direção e apontar para uma lógica de livre mercado.

Na forma proposta, a venda da Eletrobrás desperdiçará a oportunidade de revisão desse marco regulatório. A única empresa que não deve ser privatizada é a holding, mantendo sob seu controle Itaipu e Eletronuclear, que, por força do Tratado Binacional e de obrigação constitucional, ficam sob o controle estatal. A FIESP milita que a forma mais rentável para o Estado e que mais estimula a diversificação de agentes e o aumento da competição é a privatização das suas subsidiárias – Chesf, Furnas, Eletronorte e Eletrosul –, com separação total das atividades de geração e transmissão, criando sete novas grandes empresas elétricas não-monopolistas.

Não existe mágica. A descotização proposta trará aumento tarifário, pois toda cobrança de outorga é um imposto disfarçado. Nesse sentido, a permanecer a lógica do modelo de 2003, a FIESP se posiciona contra a descotização, pois essa é única forma do consumidor receber o benefício da renda hidráulica paga por ele. Para a FIESP, a descotização só se torna palatável no contexto de ampliação radical do mercado livre. Essa é a verdadeira democratização da energia. A figura do consumidor livre existe desde 1995 (Lei 9.074), para consumidores com demanda acima de 3.000 kW. Em 1996, a Lei 9.427 criou o consumidor especial, com demanda acima de 500kW a partir de fontes incentivadas. Apesar de prever reduções dos critérios de enquadramento, eles permanecem congelados há duas décadas.

É perfeitamente possível trazer toda a classe industrial para o mercado livre até 2021, pois as usinas da Eletrobrás no sistema de cotas somam 7,6 GW médios de garantia física enquanto o consumo industrial no mercado cativo é de apenas 4,5 GW médios. Com transição gradual, não haveria prejuízo das distribuidoras com sobrecontratação e ainda restaria espaço para acelerar o processo de abertura para os demais segmentos, até chegar no residencial, seguindo o exemplo de países como Portugal, onde qualquer consumidor é livre para escolher de quem contratará sua energia. Com isso, haverá mais concorrência no setor, eficiência na gestão das empresas, realidade e desindexação nos preços, o desmonte do modelo de viés estatizante e a construção de um modelo mais pró-mercado. É fazer a coisa certa do jeito certo.