A pós-verdade do PLD

A pós-verdade do PLD

Regra que permite a revisão do preço da energia é coloca em xeque pelos agentes; agência reguladora indica que pode rever o tema.

A palavra pós-verdade foi eleita pelo dicionário “Oxford” como o termo que resumiu o ano 2016. São tempos em que a verdade é substituída pela opinião. No setor elétrico também temos “pós-verdades”, embora em um contexto diferente. Com uma frequência indesejável, os agentes são surpreendidos ao saberem que informações que eram dadas como verdade no passado, na verdade não são. É incontestável a complexidade metodológica associada ao cálculo do Custo Marginal de Operação (CMO) — que resulta na definição do Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). Contudo, os recorrentes erros causados pela falta de cuidado na inserção de dados revelam a vulnerabilidade do atual modelo de formação de preço da energia no Brasil. Os agentes estão expostos a alterações que, por mais que estejam previstas na regulação, causam transtornos para o mercado e constrangimento para as entidades que são cobradas para agir com eficiência.

A notícia mais recente foi apresentada logo no primeiro dia útil de 2017, quando em 2 de janeiro o Operador Nacional do Sistema (ONS) publicou nota informando sobre uma “diferença” encontrada na representação da energia armazenada do subsistema Sudeste/Centro-Oeste. A consequência da “inconsistência” (pois a palavra erro não é utilizada por nenhum dos envolvidos) resultou na republicação dos valores do PLD da primeira semana de janeiro, com uma redução média de R$ 7,18/MWh, alterando o preço spot de todos os submercados.

No dia 14 de dezembro, esse sim bem mais tóxico para o mercado, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) comunicou os agentes sobre a republicação do PLD de novembro e das três primeiras semanas operativas de dezembro por conta de erros encontrados na definição da carga. A justificativa apresentada foi que haviam usinas que estavam representadas em duplicidade nos modelos que orientam a programação do setor. As autoridades também encontraram divergência nas informações passadas pelos agentes. Ainda houve a inclusão da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) no processo que permitiu identificar imprecisões em dados que antes não eram percebidos. Os agentes ficaram indignados quando souberam que o valor do PLD daquelas semanas seria reduzido em R$ 53,93/MWh.

“É impossível o mercado conviver com esse nível de insegurança. Há uma insatisfação e um desconforto enorme no mercado com relação a essa regra de republicação do PLD”, desabafou Reginaldo Medeiros, presidente da Associação Brasileira de Comercializadores de Energia (Abraceel). “Isso implica em refaturamento, recolhimento a maior de imposto, isso implica em uma insegurança no mercado que não dá mais para conviver com isso.”
“Não estamos dando a seriedade que o setor precisa para lidar com os seus preços. Não pode republicar o PLD. Se as coisas estão erradas, precisamos responsabilizar quem causou o erro”, defendeu Walfrido Ávila, presidente da comercializadora Tradener. “Essas situações estão levando a uma descrença na formulação de preço por modelo matemático. Quem é mais técnico, como eu, acreditava que o modelo poderia representar bem a operação, mas o que estamos vendo é que há anos o modelo não representa a operação.”
Incitados a se manifesta, Ministério de Minas e Energia, CCEE e ONS não quiseram comentaram o assunto. O Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), órgão ligado à Eletrobras e responsável pela programação dos modelos Decomp e Newave utilizados no planejamento da operação do sistema, afirmou que “não foram encontrados erros” nas versões recém-validadas dos modelos computacionais Decomp e GEVAZP (que gera cenários de vazões).
“O problema da redução no valor da Energia Armazenada Máxima -(EArmMáx) para o subsistema Sudoeste/Centro-Oeste, ocorrida na 1ª semana do PMO de janeiro de 2017, foi analisado detalhadamente pelas três instituições [Cepel, CCEE e ONS]. Chegou-se à conclusão de que os cálculos realizados pelos modelos Decomp e GEVAZP estavam corretos, e a solução mais adequada e definitiva seria ajustar o arquivo REGRAS utilizado pelo modelo GEVAZP, exclusivamente para a obtenção das vazões de postos artificiais para fins de cálculo da ENA, e o arquivo DADGER utilizado pelo modelo Decomp, a qual foi efetivamente implementada com sucesso”, disse o Cepel em nota enviada por e-mail.

É impossível o mercado conviver com a insegurança Reginaldo Medeiros, da Abraceel.

O problema da republicação do PLD não é novo. Levantamento feito pela Abraceel aponta que houve republicação do PLD em 58% das semanas entre 2010 e 2012. Depois da criação da Resolução Normativa nº 568, editada em julho de 2013, houve a republicação do PLD em 16% das semanas. Isso porque a norma criou travas para impedir que houvesse a republicação do preço da energia em qualquer circunstância e momento.

Segundo o diretor da Aneel, André Pepitone, a republicação do PLD pode ocorrer nas seguintes hipóteses de erros de: inserção de dados; identificação de problemas no código fonte em qualquer programa da cadeia de modelos; da representação de qualquer componente do sistema. Além disso, o erro precisa levar a uma diferença de 10% do PLD mínimo vigente e só gera efeito nas semanas operativas cujo resultado do aporte de garantias não foi divulgado.

“A gente entende que a norma trouxe segurança jurídica e regulatória para o processo”, defendeu Pepitone, lembrando que desde quando a resolução foi publicada houve 16 republicações do PLD, incluindo as duas últimas mais recentes. O diretor da Aneel, contudo, disse que vai analisar todos os recursos interpostos pelos agentes e reconhesse que isso “poderá motivar uma reabertura de audiência pública para rediscutir o tema”.

Hoje, a revisão da REN nº 568 é defendida até por quem apoiou o texto em 2013. “Embora eu lá atrás tenha dado um voto achando que deveria republicar”, disse o ex-diretor da Aneel Edvaldo Santana, “hoje acho que a Aneel tem que arrumar uma saída que não seja a republicação.”

“Não deveria existir tanto erro como está acontecendo. É uma frequência muito grande. Descobriu um erro em dezembro, agora em janeiro já identifica outro problema. Acho isso grave. Até se admite que aconteçam erros, mas não com uma frequência tão grande e com erros tão grandes”, criticou Santana, agora na presidência da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace).

O problema da republicação do PLD, lembrou Alan Zelazo, sócio-diretor da Focus Energia, é que essa medida não gera efeitos sobre a operação passada do sistema, dado que o despacho físico de usinas não pode ser modificado. Muitas decisões no setor são tomadas considerando o PLD previamente publicado e algumas dessas decisões não podem ser revistas posteriormente pelos agentes. “Você teve térmicas que não deveriam ser acionadas, bandeira que não deveria ser acionada”, exemplificou o executivo.
Em novembro, segundo dados do ONS, foi despachado 11.292 MW médios de geração térmica convencional e mais 1.200 MW médios de energia nuclear. Foi o mês de 2016 que mais gerou energia térmica, isso às vésperas de iniciar o ciclo de chuvas. Cabe lembrar que a geração térmica resulta em Encargo de Serviço do Sistema (ESS), pago por todos os agentes da categoria consumo.

Recursos podem motivar rediscussão da REN 568/13 André Pepitone, da Aneel.

A Petrobras foi uma das empresas prejudicadas pela republicação do PLD de novembro/dezembro. A empresa tomou a decisão de despachar algumas usinas fora da ordem de mérito, portanto, exposta ao PLD. A Geração Fora da Ordem de Mérito de Custo (GFOM) é prevista na REN 614/2014 para permitir que geradores térmicos compensem antecipadamente eventuais indisponibilidades de combustível. Assim, fica a cargo do agente escolher o melhor momento de realizar o GFOM e essa decisão leva em conta uma séria de fatores, incluindo o valor do PLD vigente.

Dessa forma, a Petrobras decidiu colocar algumas usinas em operação na época, sob a titulação de GFOM. Ao alterar o PLD, a Aneel causou um prejuízo de cerca de R$ 26,9 milhões à Petrobras, pois a geração já ocorrida não pode ser desfeita e os combustíveis adquiridos para efetuar a geração já foram pagos, disse a petroleira em recurso interposto na Aneel, visto pela Agência CanalEnergia. “Em outras palavras, a Petrobras tomou a decisão de gerar fora da ordem de mérito considerando uma situação do mercado à época e qualquer alteração posterior no valor do PLD traz insegurança jurídica e provoca diversos impactos comerciais tanto aos agentes envolvidos quanto ao mercado como um todo”, lamentou a companhia.

Em novembro, a Aneel ainda acionou a bandeira amarela, o que resultou na cobrança desnecessária de R$ 192,9 milhões dos consumidores brasileiros de energia elétrica. Segundo a Abraceel, que representa os comercializadores, cerca de R$ 700 milhões vão trocar de mão por causa da republicação do PLD de novembro e dezembro. “A republicação de preço, uma vez que a operação já ocorreu baseada naquele CMO, traz uma instabilidade jurídica para o setor como um todo”, reforçou Zelazo. “Gerou uma desorganização enorme no setor e o que pode trazer uma nova judicialização sobre um novo tema, coisa que o setor estava querendo eliminar.”

Como a republicação gerou prejuízos para uns agentes e ganhos para outros, não se sabe se as associações vão questionar a decisão da Aneel na justiça. “Praticamente todas as associações estão com esse problema. Teve agentes que ganharam e outros que perderam. Então para você entrar num processo jurídico em nome da associação fica mais complicado, porque há uma divisão. Já discutimos o assunto e não chegamos a uma decisão. Vamos discutir o assunto novamente na semana que vem, para ver se a gente chegar num acordo”, disse Xisto Vieira, presidente da Associação Brasileira de Geradoras Termelétricas (Abraget). Também entraram com recurso contra à decisão da Aneel a Associação da Indústria de Cogeração (Cogen) e a União da Indústria da Cana de Açúcar (Unica), que representam os geradores a biomassa, além de agentes individualmente. Na opinião do escritório Madrona Advogados, caso ocorra essa nova judicialização, haverá um impacto de grandes proporções no mercado.

 Modelos ultrapassados

A formação do preço da energia no mercado spot (PLD) é o resultado do processamento de dados por meio de modelos matemáticos que determinam a operação do sistema elétrico. Destaco os mais importantes: oferta de energia, demanda elétrica, água armazenada nos reservatórios das hidrelétricas e previsões de chuvas (afluências). Entretanto, há alguns anos que os modelos deixaram de representar a real operação do sistema elétrico. Para os agentes, o ideal seria migrar para uma formação de PLD baseada na premissa básica da economia de oferta de preço. Porém, o setor tem dificuldade de se libertar dos modelos matemáticos.

“Nos bastidores a gente sabe que desde 2007 que o resultado do cálculo do PLD é questionado”, afirmou Edvaldo Santana, da Abrace. O presidente da Thymos Energia, João Carlos de Mello, disse que há no setor uma reação até para estudar a possibilidade de abandonar os modelos matemáticos. “Acho que isso não é razoável”, criticou o especialista. “Existe uma resistência grande do corporativo do setor elétrico em mudar para uma formação de preço baseada em mercado, primeiro porque é uma novidade, segundo porque vai influenciar muito nos negócios.”

Desde 2007 que o cálculo do PLD é questionadoEdvaldo Santana, da Abrace.

Mello é contra a republicação do PLD e defende uma revisão da REN 568. Para ele, antes de evoluir para um novo modelo de formação de preço, é preciso aprimorar os procedimentos de coleta e inserção de dados para formação do Custo Marginal da Operação (CMO). “A gente deveria evoluir nesse tema, passar para um modelo de preço horário, mesmo com o modelo computacional…a chance de erro ficaria menor.”

Na opinião do professor Rodrigo Flora Calili, do Departamento de Metrologia Centro Técnico Científico da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CTC/PUC-Rio), o principal desafio hoje do setor está relacionado aos modelos que representam o sistema de energia brasileiro. Para ele, “esses modelos estão ultrapassados” e estão desconectados da nova realidade do setor elétrico, que tem a inserção das fontes de energia renováveis intermitentes como principal avanço.

Estas fontes, principalmente a eólica, vêm crescido substancialmente nos últimos anos, mas ainda são representadas de forma determinística nos modelos, o que não condiz com a realidade, dado a natureza intermitente desta fonte. “Ademais, é inegável que nos próximos anos haja um crescimento das fontes de energia solar fotovoltaicas, que apresentarão um novo paradigma para o setor elétrico e aumentarão ainda mais a complexidade de operação, dado a incerteza desta fonte de energia renovável que também deveria ser modelada de forma probabilística e não determinística, como é feito atualmente”, destacou o professor.

Outro ponto que requer uma revisita, continua Calili, é a demanda de energia, que no modelo atual também é representada de forma determinística. “Os modelos de demanda não captam a elasticidade que ocorre entre preço / tarifa de energia e o investimento em tecnologias mais eficientes. Além disso, os aspectos dinâmicos da demanda, como o gerenciamento pelo lado da demanda, que deve ser bem mais utilizado pelo consumidor, ainda não são captados no modelo atual. Esta é uma realidade que está aí, mas os modelos que hoje são utilizados no setor elétrico não são capazes de capturar.”

Segundo Calili, a PUC-Rio, em parceria com o Instituto Fraunhofer da Alemanha e a consultoria PSR, vem desenvolvendo modelos mais dinâmicos capazes de perceber todas estas mudanças que hoje o mercado de energia vem passando, podendo contribuir para que não haja constantes republicações do PLD. “Certamente, modelos que traduzem a realidade geram menos desconfortos para os agentes (menor judicialização do setor) e reduzem a probabilidade de republicação do preço de curto prazo (PLD).”

PLD precisava ter o carimbo de um auditor externo Leontina Pinto, da Engenho Consultoria.

Como esse tipo de mudança estrutural requer tempo, os agentes também fizeram algumas sugestões que podem ajudar a amenizar os erros na formação do PLD. Leontina Pinto, diretora da Engenho Consultoria e uma das criadoras dos modelos utilizados no setor elétrico, defende a contratação de uma auditoria independente para certificar que os dados de entrada dos modelos estão corretos. “É preciso verificar se essas contas estão certas. Acho que um número como o PLD precisava ter o carimbo de um auditor externo.”

Santana concordou com a sugestão de Leontina e acredita que uma auditoria poderia ser um caminho interessante. Ele também propõe outras duas sugestões. A primeira consiste em criar um PLD ex-ante e outro ex-post, sendo este último mensal e o que deveria ser utilizado para a liquidação das operações no mercado de curto prazo. “Apesar de ser bastante simples em termos de aplicação e de regulamentação, esta alternativa exigiria que o erro fosse identificado em um horizonte máximo de 45 dias. Ademais, requer uma mudança da Lei.”

A outra sugestão, esta de mais difícil regulamentação, propõe repartir entre os agentes a consequência do erro, afim de evitar uma republicação do PLD e criar um incentivo para que se tenha mais rigor nos dados de entrada. “Sempre que existir um erro, daqueles que requerem uma recontabilização, os efeitos disso, limitados a 50%, em R$, serão rateados em três partes: 10% para o ONS, sem ultrapassar a 5% do seu orçamento anual, e o restante para os demais agentes do mercado, na proporção dos respectivos números de votos na Assembleia Geral da CCEE. Os recursos assim arrecadados seriam revertidos para a modicidades das tarifas. Os pagamentos poderiam ser feitos em uma ou diversas parcelas mensais, inclusive pelo ONS”, defendeu Santana em artigo publicado em seu blog Papo de Energia. “Acredito que estamos num momento adequado para estudar novas ideias, a carga caiu e a oferta por energia nova diminuiu”, concordou Mello.