Choque elétrico
Atraso em linhas de transmissão fragiliza a segurança energética do País e eleva o custo da eletricidade. Em Roraima, impasse com índios deixa o estado dependente das térmicas e sujeito a apagões.
O setor de energia costuma ser apontado como um grande catalisador de prosperidade. Ter um sistema elétrico robusto é pré-requisito para o desenvolvimento econômico de um país. No Brasil, o setor enfrenta crises recorrentes. Seja por falta de chuvas, planejamento ou investimento, há sempre uma ameaça latente. Desde os apagões de 2001 e 2002, diversos agentes buscaram soluções, pressionaram os governos e conseguiram equacionar os gargalos. O sistema é hoje muito mais confiável, mas ainda há pontos frágeis, como o lento avanço das linhas transmissão. O atraso nas obras chega a nove anos. Hoje, 141 empreendimentos, de um total de 415, estão hoje fora do cronograma. Há dois principais motivos por trás dos atrasos: 40% deles acontecem por problemas na execução física das obras e outros 45,5% por atrasos no licenciamento ambiental.
Responsável pela autorização ambiental, o Ibama conta com apenas 24 analistas para analisar o segmento de transmissão elétrica, além de projetos de gasodutos. Apesar disso, o instituto garante que não há atrasos nas análises. Não é o que sugerem os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), com o registro de atrasos causados por problemas no licenciamento. Em 2019, o tempo médio para obtenção de uma licença era de 422 dias. “O prazo para o licenciamento continua ruim”, afirma Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil. “Tanto que, nos últimos leilões, o governo entendeu que precisava mudar as regras e aumentar o prazo para o início da construção dos empreendimentos e, só assim, as contratações passaram a ser mais realistas.”
Alguns atrasos são emblemáticos. A linha de transmissão que ligará Boa Vista (RR) a Manaus (AM) foi licitada em 2011 e deveria entrar em operação em 2015. “Os empreendedores compraram os equipamentos, mas o licenciamento parou por conta da questão indígena”, afirma Sales. Dentre todas as capitais, Boa Vista é a única que ainda é atendida por um sistema isolado. Apenas após a conclusão da linha de transmissão, a cidade estará integrada ao Sistema Interligado Nacional (SIN) e poderá contar com a energia gerada em qualquer local do país. Além de Roraima, existem outras 236 localidades isoladas no país, a maioria nos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Amapá, Pará, a ilha de Fernando de Noronha, e algumas regiões de Mato Grosso. Com baixo consumo energético, elas são abastecidas, principalmente, por usinas térmicas a óleo diesel.
Somente em Roraima são consumidos 1 milhão de litros de óleo diesel por dia para abastecer as térmicas que garantem energia ao estado. E, mesmo assim, parte da região depende de energia da Venezuela. Com o aumento da tensão no país vizinho, o estado vive assombrado pelo medo de que o abastecimento seja interrompido a qualquer momento. Na terça-feira, 30, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que a linha será construída “independente da manifestação dos índios” e prometeu para 15 de maio uma solução para o problema. Com 715 km de extensão, o linhão de Roraima atravessa 120 km de terra pertencente aos indígenas Waimiri – Atroari, que vivem entre o sul do estado e o norte do Amazonas. De um total de 1.440 torres de transmissão previstas, entre 250 e 300 torres passariam pela terra indígena. Em fevereiro, o Ministério de Minas e Energia (MME) divulgou decisão do Conselho de Defesa Nacional que classificou o linhão como “estratégico para a soberania e defesa nacional.” A expectativa é que as obras comecem no terceiro trimestre deste ano, com início de operação estimado para dezembro de 2021.
A medida foi tomada com base numa decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, também em Roraima. A corte determinou que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional e que obras poderiam ser realizadas independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 2013, porém, o STF decidiu, por unanimidade, que tal acórdão não tinha caráter vinculante. Quatro anos depois, o ex-presidente Michel Temer definiu que todos os processos de demarcação de terras indígenas seguiriam o entendimento daquele caso.
O problema é que a linha de transmissão em questão não diz respeito a um apenas à demarcação de terras, e sim, de uma área que já é reconhecida como de posse dos índios. Segundo o MME, o consórcio Transnorte, formado pela Alupar e Eletronorte, está executando um projeto específico para a questão indígena, com a participação da comunidade afetada nos estudos. A idéia é evitar a passagem da linha por sítios considerados sagrados. Enquanto a situação não se desenrola, os consumidores de todo o país arcam com os altos custos da energia na região. Só neste ano, as térmicas de Roraima devem consumir R$ 600 milhões. A cifra pode subir para R$ 1,7 bilhão caso a Venezuela deixe o Brasil na mão, o que não muito difícil de acontecer. Nos últimos dois anos, Boa Vista enfrentou 118 apagões. “Não é só um prejuízo para o empreendedor”, afirma Sales. “Perde todo mundo, que tem de arcar com este custo.”
Toda vez que uma linha de transmissão não é entregue no prazo as usinas que contavam com tais empreendimentos para injetar energia no sistema são obrigadas a contratar energia de outra usina, a um preço mais caro no mercado de curto prazo. Assim, não descumprem uma obrigação contratual. “O custo fica mesmo com o consumidor e, de uma forma geral, todo este problema acaba desestimulando empreendedores a investirem no sistema”, afirma Ricardo Gedra, coordenador do curso de pós-graduação em Gestão de Energia da Fundação Álvares Penteado (FECAP).
O Tribunal de Contas da União (TCU) calculou que o prejuízo causado pela ausência das linhas de transmissão da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará, deve ultrapassar R$ 1,5 bilhão. Segundo o relatório, a paralisação das obras dos 6.300 km das linhas, provocados pela falência da Abengoa, vencedora da licitação, provocou danos para a administração pública e está impactando todo o intercâmbio de energia da região Norte para as regiões Sudeste e Nordeste. O sistema opera com restrição, tem a confiabilidade ameaçada, com risco ao suprimento de energia. O relator do processo, ministro Aroldo Cedraz, recomendou que a Aneel processe judicialmente a empresa, em razão das perdas e danos sofridos por sua inadimplência contratual. A decisão surpreendeu o mercado. “Quando o TCU fala em perdas e danos, pode acabar afetando o negócio de transmissão”, diz Mario Miranda, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate). “Isso poderia fazer a Aneel reconhecer na tarifa um seguro de proteção contra atraso de obras.”
Parte da solução está no alargamento dos prazos de licenciamento, o que já vem sendo feito. Para Miranda, é preciso também “dar mais condições ao IBAMA, aumentar equipes e oferecer recursos adequados para que possam fazer um bom trabalho.” No caso da Abengoa, o governo decretou, em 2017, a caducidade dos nove contratos de concessão para as linhas de transmissão, um investimento de R$ 7 bilhões, e fez uma nova licitação. Segundo o Operador Nacional do Sistema (ONS), o problema causado pela espanhola já foi superado e o primeiro circuito, que leva a energia de Belo Monte para o Sudeste, já está operando. O circuito seguinte entrará em operação no segundo semestre.
PREJUÍZO AMBIENTAL
Para o diretor da Associação Brasileira de Companhias de Energia Elétrica (ABCE), Alexei Vivan, esse e outros casos devem servir como um alerta para o governo: se houver um aumento no consumo de energia, atrasos até mesmo em empreendimentos menores podem se tornar um grande problema. “Todas as linhas precisam ser construídas nas datas planejadas”, afirma Vivan. “Só esse planejamento dará segurança para o futuro”.
A nova gestão do Ministério do Meio Ambiente, comandada por Ricardo Salles, que tem uma visão mais pró-negócios, está disposta a contribuir. Ele trabalha com o Congresso para simplificar o processo de licenciamento ambiental. “Tem de ser um processo muito técnico e bastante célere, caso contrário cria-se uma expectativa de desenvolvimento do País que não se verifica”, afirmou Salles à DINHEIRO. “Em Roraima, deixou-se de fazer o linhão porque cruza a terra indígena, mas a opção foi ambientalmente muito pior, com a queima de combustível fóssil. É uma decisão irracional.”