Reforma do sistema elétrico

Reforma do sistema elétrico

O Sistema Elétrico Brasileiro (SEB) tem características específicas muito favoráveis:

(i) recursos hídricos distribuídos pelo país com regimes hidrológicos distintos que permite operá-lo com vastos reservatórios para regularizar o abastecimento de energia do país;

(ii) parque gerador interligado nacionalmente por extensa rede de transmissão que viabiliza a transferência de grandes blocos de energia entre suas regiões;

(iii) matriz elétrica com forte presença de fontes renováveis de energia (79%, em 2016) que lhe confere característica bastante amigável com o meio ambiente;

(iv) acesso praticamente universal dos consumidores ao suprimento de energia.

Não obstante essas vantagens comparativas, o Brasil deixou de dispor de energia barata para apoiar seu desenvolvimento econômico. Pelo contrário, tornou-se um dos países com custos elétricos mais elevados do mundo. A comparação é ainda mais desfavorável quando os impostos são adicionados às contas elétricas.

E, apesar da tarifa elevada, nosso suprimento de energia tornou-se muito vulnerável às inevitáveis flutuações da hidrologia. A capacidade de reserva, que já representou o equivalente a quatro anos de consumo nos anos 1980, corresponde hoje a menos de seis meses. A predominância de usinas eólicas na expansão do parque gerador, o incremento dos consumos consuntivos da água (abastecimento d’água, irrigação, navegação etc) e o assoreamento dos reservatórios existentes reduziram sua capacidade efetiva de atender a demanda de energia nos períodos de estiagem. É inexorável uma profunda revisão na regulação do uso da água que aflui para os reservatórios hidrelétricos.

A capacidade de reserva, que já foi equivalente a quatro anos de consumo nos anos 1980, é hoje de menos de seis meses A involução do sistema elétrico brasileiro deve ser creditada a uma longa série de equívocos iniciada na reforma de 1994/5, que foi aprofundada em 2004/5 e agravada em 2013/14. Ditados pela intenção de mitigar os déficits gêmeos do Tesouro e do balanço de pagamentos, bem como a contenção do ritmo inflacionário, esses equívocos debilitaram progressivamente a confiabilidade do suprimento de energia do país e a saúde financeira das concessionárias.

Não cabe aqui analisar em detalhe as contradições desse processo. É válido, no entanto, destacar seus principais problemas e distorções:

– A sistemática de garantias físicas (GFs) para as geradoras comercializarem energia, que lhes assegura receitas dissociadas de sua geração efetiva determinada pelo ONS;

– A adoção de modelos matemáticos para definir o custo marginal do sistema (CMO) e o preço de liquidação das diferenças (PLD) cuja artificialidade estatística favorece a especulação em detrimento da eficiência econômica;

– A gestão dos reservatórios com base em modelos que induzem a supergeração hidrelétrica, esvaziando imprudentemente os reservatórios;

– A bipartição do mercado consumidor em um segmento “cativo” e outro “livre”, que coloca a responsabilidade de garantir o financiamento da expansão do sistema nos ombros dos consumidores cativos;

– A metodologia de expansão do sistema de transmissão desconectada dos projetos de geração que impossibilita a energia de certas centrais alcançar o mercado consumidor;

– A regulamentação das transações setoriais eivada de incertezas que induz a judicialização dos fluxos econômicos entre os agentes do setor. Neste processo de reformas, a Eletrobras tornou-se mera parceira de negócios de interesses privados e espaço para acomodação de apadrinhados de grupos políticos.

Os papéis da Eletrobras de agente financeiro do setor e braço estratégico da articulação geopolítica do sistema elétrico nacional foram sendo paulatinamente erodidos. A proposta de privatização da empresa será o ponto culminante desse processo. Com ela, o Estado brasileiro perderá instrumento necessário para exercitar sua política energética, especialmente na articulação com nossos países vizinhos.

É consensual a urgência de uma reforma institucional profunda na organização industrial do SEB. Esta reforma não pode, contudo, deixar de reafirmar o papel insubstituível do Poder Concedente como gestor dos recursos hídricos e garantidor da segurança do suprimento energético do país. Do nosso ponto de vista, dois devem ser os pilares dessa reforma:

– Uma nova metodologia para a gestão dos reservatórios;
– A criação de sistemas regionais de transmissão.

Tornou-se inexorável rever o comando atual do uso da água que aflui para os reservatórios hidrelétricos. A operação adequada desses reservatórios é fator determinante na segurança do abastecimento de água da população urbana e no desenvolvimento de nossa atividade agropecuária, como estamos verificando atualmente na bacia do São Francisco.

É indispensável que o Estado possa exercer o controle efetivo dessa operação. A gestão dos recursos hídricos é atribuição da Agência Nacional de Águas (ANA) a quem cabe fixar limites mínimos e máximos para os níveis dos reservatórios.

Esses limites devem garantir prioritariamente o atendimento da demanda dos usos consuntivos e, subsidiariamente, o suprimento de energia nos períodos de estiagem, ouvido o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). Respeitados esses limites, deve ser dada liberdade às geradoras para decidir o despacho da água remanescente, assumindo os riscos econômicos de suas decisões. No que concerne ao sistema de transmissão, é indispensável reafirmar o caráter determinativo de sua expansão. Não é aceitável que centrais elétricas entrem em operação antes de estar também operacional o sistema de transmissão necessário para colocar sua energia nos mercados consumidores.

A solução para esse problema reside na organização de sistemas regionais de transmissão que devem assumir a responsabilidade de garantir capacidade de transporte da energia das geradoras até os mercados consumidores. A interligação entre os sistemas regionais de transmissão deve ser objeto de programa de expansão determinativo do CNPE. Dada a situação de monopólio natural desses sistemas, suas tarifas devem ser fixadas no regime preço teto incentivado, à semelhança do que ocorre nos sistemas de distribuição. Adilson de Oliveira é professor da UFRJ. Luiz Alfredo Salomão é professor da Universidade Candido Mendes