Modernização, simplificação e mercado livre

Modernização, simplificação e mercado livre

Otávio Marshall*

Em meio às polêmicas envolvendo a atualização da Resolução Normativa 482 (RN 482), que é parte da modernização do setor elétrico brasileiro, cabe analisar filosoficamente um ponto chave nos aperfeiçoamentos regulatórios em curso: a autonomia para o usuário de energia. É emblemático, e ao mesmo tempo constrangedor, haver consumidores na base do nosso sistema elétrico, denominados oficialmente como “cativos”; pior, corretamente, pois a maioria não tem liberdade de escolha… Modernizar e oferecer mais opções ao mercado, são complementares, mas há um elemento importante que precisa estar alinhado: o regulamento, a norma, a regra. A Recomendação Nº 2/2019 do Ministério Público Federal (MPF), parte do processo de consultas da RN 482, publicada em 29/11/2019, colocou a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) em uma posição delicada. Seu último parágrafo é autoexplicativo: ou a Agência avalia criticamente as considerações e as recomendações do documento (que têm um conjunto de argumentos concisamente articulados para quem representa a sociedade), ou seu papel regulamentador será levado a julgamento por desconsiderar elementos intrínsecos a esse poder num estado de direito. Um dos “considerandos”, descrito no terceiro parágrafo da página 4, chama a atenção (sic): “(..) que a execução de atividades finalísticas da ANEEL deve pautar-se pelas diretrizes de prevenção de potenciais conflitos (Decreto nº 2.335/97, art. 3º, inciso I), regulação e fiscalização realizadas com o caráter de simplicidade e pautadas na livre concorrência entre os agentes, no atendimento às necessidades dos consumidores e no pleno acesso aos serviços de energia elétrica (inciso II), adoção de critérios que evitem práticas anticompetitivas e de impedimento ao livre acesso aos sistemas elétricos (inciso III) (..)”. Na página 5 do documento, à letra “d”, há a recomendação: “(..) que eventual mudança de normatividade seja feita de forma simplificada e gradual (..)” É uma provocação (ou lembrança?) corajosa e oportuna, se vamos dar seguimento à modernização, e empoderar consumidores. Começando pela tarifa, a brasileira tem quase 30 componentes, cada um deles incorporado por uma norma específica, mais os tributários, com outras normas específicas (até certo ponto). Ela é ininteligível, e talvez por esse motivo o debate sobre os alegados “subsídios cruzados” tenha subtraído a razão e adicionado a emoção no processo em curso. Não há surpresa. Alterar um sistema baseado em compensação volumétrica de um para um, mexendo nos pesos da compensação explicando somente parte do critério, não poderia ter resultado diferente. Por outro lado, explicar ao cidadão todo o critério, exigiria um curso de especialização, no mínimo. Simplificar regulamentos não é novo no mundo, não é novo no segmento e tem poucas contraindicações. Contudo, deve considerar a técnica, a ciência e as experiências empíricas existentes. Há uma corrente mundial engajada em tornar o Direito mais acessível ao cidadão comum e às empresas, mesmo em lugares com alto nível de escolaridade ou de alfabetismo funcional, ferramentas básicas para interpretar normas. Um desses movimentos é o “visual law”, que utiliza recursos do design gráfico para facilitar a compreensão de regras, como o “Vendor Power” em Nova York. Helena Haapio é uma autora finlandesa com densa pesquisa e trabalhos nessa área, que sentenciou em artigo de 2013 no blog da Universidade de Cornell, EUA (tradução livre): “não é mais suficiente (se é que foi um dia) oferecer mais informações ou aprimorar a transparência: o verdadeiro desafio é a compreensibilidade do conteúdo.” Um mercado de energia elétrica competitivo e diversificado – onde o consumidor não é cativo – é também uma nação que simplificou a compreensão sobre a mercadoria energia com menos regulamentos, menos intervenção governamental, mais liberdade e mais tecnologia. Na Nova Zelândia, com quem o Brasil compartilha semelhanças como o sistema interligado de fontes renováveis e intermitentes, a tecnologia entrou para facilitar a compreensão do sistema e a gestão dos serviços pelo usuário. Foi por aí a base conceitual do neozelandês Ari Sargent, pensador por trás de plataformas digitais disruptivas. Dentro de uma típica big player, Sargent traduziu as variáveis que compunham o produto energia para o cliente, por meio de um aplicativo que potencializa a liberdade de escolha. Atualmente esse app quase instantaneamente analisa perfis de consumo e monta pacotes integrando geração (competitiva), transmissão (regulada), medição (competitiva) e distribuição (regulada), que se transforma num contrato de energia se, após uma comparação, o cliente decidir pela oferta de uma comercializadora, segmento no qual abundam opções para todos perfis de usuários. A experiência foi interessante a ponto de a plataforma viabilizar outra empresa, que serve a outras comercializadoras e outros mercados como o inglês e o australiano. Esse é um exemplo de iniciativa em um mercado moderno, e inovador. E que tem regulação forte e segurança no fornecimento do insumo. É (quase) consenso que o setor elétrico não pode depender de subsídios diretos, indiretos ou cruzados. Para isso, a tarifa precisa ter menos componentes administrados, e mais componentes sujeitos à livre concorrência. O que, de certa forma, já se pratica no ACL. Um ambiente de contratação livre, inevitavelmente fará parte do nosso futuro, e se isso acontecesse amanhã, já seria tardio. Como bem destacou o MP, é recomendável que a ANEEL insira a simplificação em seus procedimentos no amplo senso, para que, novamente a título exemplificativo, muitos mais entendam para onde vai o valor gasto com energia, e para que muitos mais ofereçam soluções para diminuir esse valor. Se isso acontecer, quem sabe daqui alguns anos o termo “consumidor cativo de energia” se junte a outros como “proprietário de linha telefônica” ou “capitanias hereditárias”.

Otávio Marshall é diretor e sócio da Renobrax Energias Renováveis*