Garantia física: preocupação com o risco do modelo
Revisão da energia assegurada das UHEs a partir de 2018 suscitou debate sobre os parâmetros de aversão a risco.
A discussão sobre a revisão da garantia física das usinas hidrelétricas pelo Ministério de Minas e Energia suscitou a preocupação dos geradores com os parâmetros de aversão a risco considerados no modelo proposto. Eles também defendem a manutenção dos limites mínimo e máximo do Preço de Liquidação das Diferenças para que a energia seja valorada por um critério mais aderente ao mercado, em vez de se considerar o Custo Marginal de Operação. Nem todos os agentes do setor elétrico concordam com a necessidade de revisão. Mas há quem lembre que esse processo deveria ter acontecido com a periodicidade de cinco anos prevista na legislação, e condene os sucessivos adiamentos que foram feitos ao longo do tempo.
A proposta elaborada pela Empresa de Pesquisa Energética prevê redução de 1,4 mil MWmédios de energia de 122 usinas hidrelétricas passiveis de revisão, em um grupo de 148 empreendimentos, a partir de 2018. O montante de energia retirado dos limites de contratação dessas usinas equivale a 3,2% dos 42,6 mil MWmédios passíveis de revisão, e a 2,5% de toda a garantia física das UHEs do Sistema Interligado Nacional. Caso seja mantido esse número, a garantia física total hidrelétricas do SIN vai passar de 57,4 mil MWmédios para 56 mil MWmédios. A nota técnica da EPE traz os valores calculados a partir da metodologia e das premissas de cálculo estabelecidas no relatório Revisão Ordinária de Garantia Física de Energia das Usinas Hidrelétricas, de novembro de 2016. O documento foi elaborado por um grupo de trabalho criado em dezembro de 2014 pelo MME para discutir e elaborar as diretrizes da revisão.
Serão revistos os valores de garantia física das usinas hidrelétricas despachadas centralizadamente no Sistema Interligado, que tiveram a energia assegurada definida há pelo menos cinco anos, até 31 de dezembro de 2010. Do total de 148 empreendimentos incluídos na configuração de referência das hidrelétricas, 26 estão fora do processo de revisão, porque não preenchem esse requisito. O grupo é composto por grandes projetos como Jirau e Santo Antônio, e soma 13.418,58 MWmédios. Além dessa energia, não serão revistos 152,9 MWmédios de usinas com benefícios indiretos vigentes e 85,2 MWmédios referentes a acréscimos ou decréscimos de garantia física resultantes de revisões extraordinárias das UHEs Capivara, Chavantes e Salto Santiago, que estão em processo de modernização, além de Curuá-Una, que será ampliada.
Das usinas passiveis de inclusão no processo, 48 tiveram redução de garantia física local maior que 5% da garantia atual, mas a proposta limita esse percentual aos 5% do valor da última revisão ordinára, conforme previsto no Decreto 2.655, de 1998. A norma estabelece ainda que a redução total da garantia física das usinas não pode ser maior que os 10% admitidos no contrato para todo o período da concessão.
Não foram consideradas na configuração de referência projetos com concessão devolvida por autoprodutores como Couto Magalhães, Baú I, Murta, Itaocara, Olho d’Água e Santa Isabel; além de aproveitamentos hidrelétricos também para autoprodução com graves impedimentos para construção ou em processo de devolução das outorgas, como Tijuco Alto, Pai Querê, Itumirim, São João e Cachoeirinha. Essas usinas foram outorgadas no inicio dos anos 2000, mas não saíram do papel por problemas de licenciamento ambiental e por decisões judiciais.
Hidrelétrica de Capivara, da Duke Energy, um dos poucos exemplos que não passará por revisão
O presidente da Empresa de Pesquisa Energética, Luiz Augusto Barroso, explica que a proposta pretende, basicamente, alinhar planejamento e operação. “Isso significa mais realismo no planejamento. Significa que existiam 1.400 MW médios que estavam contratados no mercado sem ter o verdadeiro respaldo físico. Ao fazer isso, a gente ajusta o sistema a sua real condição de suprimento, evita a compra de energia de reserva desnecessária e equilibra mais os critérios de planejamento aos de operação”, disse o executivo. Para um gerador que está contratado, reconhece Barroso, perder garantia física implica ter que recompor o contrato. Para a distribuidora, é a mesma coisa.
O processo está em andamento, porque a consulta pública foi encerrada na última segunda-feira, 12 de dezembro, e o ministério ainda vai estudar as contribuições recebidas para poder tomar uma decisão sobre que fazer. A discussão sobre a revisão da garantia física é, na verdade, a continuidade do trabalho iniciado na gestão anterior, reconhece o presidente da EPE. “O que nos fizemos foi, humildemente, estudar o trabalho anterior e dar continuidade a algo. Esse processo já era de conhecimento dos agentes durante dois anos e meio. Houve cinco reuniões plenárias e tudo o mais.”
Revisão trará mais realismo ao planejamento Luiz Augusto Barroso, da EPE.
Para o diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica, Romeu Rufino, há questões que têm de ser resolvidas independentemente de mudança de governo. É o caso da revisão da garantia física das hidrelétricas. “Isso já era para ter sido feito há muito tempo. Tem toda uma disciplina em torno do assunto”, destacou Rufino. Ele pondera que rever os valores estabelecidos para que eles reflitam a real capacidade das usinas é uma decisão que tem de ser tomada, porque essa é uma questão que não está relacionada à rediscussão do modelo setorial. “Tem a ver com atitude, com o que tem que ser feito”, acredita o diretor da Aneel.
Uma das manifestações de apoio à proposta veio da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, que vê na revisão uma oportunidade de mitigar a sobrecontratação de energia do segmento de distribuição. Em contribuição apresentada durante a consulta pública aberta pelo MME, a Abradee defende que as revisões de garantia física sejam aplicadas em 2017, e não em 2018, para que “seus efeitos repercutam imediatamente nos lastros dos contratos de cotas.”
A Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica adverte para a possibilidade de grandes impactos financeiros para alguns agentes, principalmente aqueles que têm toda a garantia física vendida em contratos e podem não conseguir fazer a reposição total do lastro devido. A Abrage sugere a redução escalonada ao longo de três anos, a partir do início de vigência da revisão. “Tendo em vista que uma redução pode impactar expressivamente a saúde financeira de um projeto, é necessário que o empreendedor tenha um tempo hábil para reprogramar sua estratégia de forma garantir a continuidade da viabilidade do projeto”, afirma a entidade.
Revisão tem que ser feita independente de governo Romeu Rufino, da Aneel.
A Abrage também sugere que a valoração da energia seja feita a partir dos valores máximo e mínimo do PLD, “de forma a torná-la aderente à realidade econômica do mercado de energia”, e não pelo CMO, conforme propõe a metodologia. Há preocupação também em relação aos parâmetros de aversão a risco adotados na proposta. A associação alega ainda que existem usinas do Sistema Interligado que já perderam 5% de sua garantia física quando os montantes foram reduzidos pela Aneel em 2003, o que pode gerar questionamentos futuros dos empreendedores.
Contribuições na mesma linha foram apresentadas pela Eletrobras. A estatal alerta que a revisão da garantia física de uma usina “pode trazer impactos negativos à saúde financeira do projeto.” “Portanto, como uma recomendação geral, entende-se que não deve ser revista a Garantia Física do empreendimento durante seu período de concessão”, defende a empresa.
A Eletrobras também é contrária ao desmembramento entre a parcela de garantia física que passou por revisão extraordinária (em decorrência de ampliações e modernizações da usina) e a parcela vigente, que vai ser incluída na revisão ordinária; questiona o uso de parâmetros conjunturais de aversão a risco, como a CVaR; propõe que sejam revistos os ganhos indiretos proporcionados na cascata em que os empreendimentos estão inseridos, antes da data de referência adotada para a revisão (31 de dezembro de 2010), e que o cálculo para a distribuição desse beneficio às usinas envolvidas se dê por uma metodologia única. A empresa questiona, finalmente, se as premissas do decreto de 1998, que determinou a realização de revisões ordinárias a cada cinco anos, continuam válidas.
A Associação Brasileira de Produtores Independentes de Energia Elétrica reforça a preocupação dos geradores com a adoção dos novos parâmetros do mecanismo de aversão a risco. A Apine destaca que o setor experimentou ao longo do tempo diferentes mecanismos com impactos diretos na operação e no PLD, como a Curva de Aversão a Risco, os Procedimentos Operativos, a metodologia CVaR (Valor Condicionado a um dado Risco) com os parâmetros alfa e lambda 50/25, e reconhece que esses aperfeiçoamentos são saudáveis. Mas faz ressalvas à alteração dos parâmetros alfa e lambda para 50 e 40, respectivamente, a partir de maio de 2017, por ferirem o conceito de estabilidade e de previsibilidade.
Mudança de parâmetros preocupa Mario Menel, da Abiape.
O mesmo raciocínio, segundo a Apine, pode ser aplicado à atualização do Custo do Déficit, que passou de R$3.250,00 para R$4.650,00. “A atualização deste parâmetro também torna mais severa a redução de Garantia Física das UHEs sem os estudos e aprofundamentos necessários para justificar tal medida”, pondera a associação. Outra contribuição é para que a exigência da recomposição do lastro se dê de forma gradual, na proporção de 20% ao ano, para que, em cinco anos, o gerador tenha todo o lastro recomposto, sem penalidade para a diferença entre a redução integral e a parcela escalonada.
A preocupação com a alteração do parâmetro Lambda da CVaR de 25 para 40 também está na contribuição da Cesp. A mudança proposta tem o objetivo de antecipar o acionamento de usinas térmicas mais baratas, para evitar que os reservatórios atinjam níveis indesejáveis de armazenamento futuros. A estatal sugere o “aprimoramento, a ampliação e revisão do procedimento de cálculo do custo do déficit, de forma que considere o custo social de disponibilização de energia em condições adversas.”
Para a Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia, a adoção de diferentes mecanismos ao longo dos anos “mostra a volatilidade dos critérios de aversão a risco adotados no sistema.” “Não há garantia de que os parâmetros de aversão a risco utilizados nessa revisão de garantia física serão mantidos nos próximos anos”, afirma a Abiape. Os autoprodutores lembram que em maio de 2017 serão revistos os parâmetros do modelo CVaR, e que em 2018 deverá ser implantado a SAR (Superfície de Aversão a Risco). Assim como as demais associações de geradores, a Abiape entende que a instabilidade dos parâmetros “é incompatível com o conceito de garantia física”, parâmetro de longo prazo “que determina o lastro comercial da usina”, e que precisa ser “definido com base em critérios estáveis para atrair investimentos necessários.”
Há questionamento também em relação ao baixo valor de risco de déficit que a proposta do governo embute – de 0,44% de valor máximo médio obtido na revisão, quando a lei permite um limite de risco de 5%. A Abiape afirma que esses valores punem as usinas, e propõe que seja considerado um custo de déficit único, com base nos valores vigentes, de R$ 4.000,00/MWh. A associação também propõe que no cálculo da garantia física sejam considerados os limites do PLD.
O novo presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres, Edvaldo Santana, admite que não fez uma análise aprofundada dos números que estão na proposta em consulta pública, mas questiona sua consistência. “O que é o GSF (Generation Scaling Factor)? É uma divisão entre os que as hidrelétricas geraram pelo que deveriam ter gerado. Se em 2014 e 2015 teve GSF de 0,80 significa que elas teriam gerado 20% menos do que deveriam gerar. E, quando aplica o GSF, tem que reduzir a garantia física das usinas mês a mês. Então, passar três anos com GSF abaixo de 0,9 e a garantia física reduzir menos de 3% me pareceu estranho. Eu achava que a redução deveria, para ser coerente com o numero dos últimos três anos, não ser 20%, mas deveria ser um pouco maior [que o previsto na proposta]”, opina.
Revisão deveria ser um pouco maior que a proposta Edvaldo Santana, da Abrace.
Na manifestação enviada ao ministério, a Abrace não identifica novos pontos de aprimoramento na metodologia e nos critérios propostos, e destaca a importância da atualização e cálculo dos usos consultivos da água, “variável relevante para a mensuração da produtividade de algumas UHEs.” A associação observa que a redução da garantia física seria da ordem de 6,11%, caso não houvesse a aplicação dos limites previstos no decreto de 1998. Isso representa uma diferença de 1.280 MW médios, e “evidencia que mesmo após esta importante revisão ordinária, os modelos computacionais, assim como o mercado de comercialização de energia, continuaram trabalhando com um montante de lastro de energia dessas UHEs que não corresponde à capacidade real do bloco hidráulico.”
Santana critica os sucessivos adiamentos da revisão da garantia física pelo MME e diz que a justificativa do governo para não reduzir os valores em 2004, 2008 e em 2012 era de que estava discutindo a metodologia. Mas destaca que a revisão de agora tem como base a regra de cálculo de 1998 – a mesma que calculou lá atrás a energia das usinas disponível para contratação.
Mais otimista quanto ao impacto da revisão sobre o fator de ajuste que reflete a geração abaixo da energia assegurada das hidrelétricas, Barroso prevê que “a vida deve melhorar para os geradores”, por causa da compatibilidade entre o limite de energia contratada dentro do Mecanismo de Realocação de Energia e o perfil do planejamento e da operação do sistema. Quando a garantia física da usina está sobrestimada, ensina o presidente da EPE, é possível que o gerador acabe pagando implicitamente essa sobreavaliação por meio do despacho térmico, que provoca a redução do GSF. Ao reequilibrar a conta, principalmente em relação à operação, a ideia é restabelecer o equilíbrio do MRE.
O presidente da Abiape, Mario Menel, também admite possíveis efeitos positivos da medida para os geradores. Ele destaca, no entanto, que se a usina tem desempenho abaixo do necessário para garantir a cobertura da energia contratada, isso traz prejuízo comercial. “A lei estabelece que a cada cinco anos você teria que fazer isso. Por que a consulta pública? Porque você precisa checar todos os dados de entrada dos modelos”, afirma Menel. O executivo pontua que há um excesso de oferta de energia no mercado que está se tornando estrutural.