Financiamento do Setor Elétrico: desafios e novos caminhos

Financiamento do Setor Elétrico: desafios e novos caminhos

Historicamente, a dificuldade de financiamento foi a principal razão para a criação das estatais brasileiras de geração, transmissão e distribuição em meados do século passado.

A geração, transmissão e distribuição de energia elétrica são atividades intensivas em capital. Grandes investimentos em terrenos, instalações, máquinas, equipamentos e serviços são necessários para fornecer energia elétrica. Isso significa que a prestação do serviço de energia elétrica é fortemente impactada pelo custo da obtenção de recursos financeiros e por sua disponibilidade no tempo.

Historicamente, a dificuldade de financiamento foi a principal razão para a criação das estatais brasileiras de geração, transmissão e distribuição em meados do século passado. Décadas depois, o comprometimento da capacidade financeira governamental induziu as privatizações e a procura por investimentos privados. Nesta mesma direção, em 2004 foram introduzidos os leilões de geração e transmissão de energia proporcionando contratos de longo prazo para facilitar o “Project Financing” (contratos garantidos pela receita futura do projeto).

Não obstante décadas de evolução, o financiamento do setor elétrico continua complexo e, quando se compara o Brasil a outros países, ficam evidentes os aspectos que mais nos penalizam.

O Banco Mundial, no relatório “Doing Business 2016”, situou o Brasil na 116ª posição entre os 189 países avaliados, sendo que o segundo fator que mais afetou nossa péssima classificação foi a dificuldade para obtenção de crédito. De forma sucinta, os estudos indicam a necessidade de aprimoramento do mercado financeiro brasileiro.

Com esta motivação, o Instituto Acende Brasil elaborou o White Paper 20 – Financiamento do Setor Elétrico: Desafios e Novos Caminhos (disponível em www.acendebrasil.com.br/estudos), cujas principais análises e conclusões relatamos neste artigo.

Principais Causas

São quatro as principais causas do problema de financiamento no Brasil: a baixa taxa de poupança, o efeito “crowding out”, a instabilidade macroeconômica e o risco regulatório.

A sociedade brasileira poupa pouco. Em termos agregados, a taxa de poupança da economia brasileira soma meros 15,8% do Produto Interno Bruto (PIB), muito abaixo da média mundial de 24,5% e abaixo também dos 18% da média da América Latina e Caribe.

A segunda grande causa dos problemas de financiamento decorre do chamado efeito “crowding out”. Os investimentos em infraestrutura precisam competir por recursos financeiros com um concorrente muito maior e mais poderoso, que abocanha a maior parte da poupança doméstica: os governos. Quando o governo amplia seus dispêndios, há duas formas de custeá-los: pela tributação ou pela emissão de títulos públicos. A primeira eleva a tributação, reduzindo o lucro das empresas, e a segunda reduz a disponibilidade de crédito e eleva a taxa de juros.

Uma parcela muito elevada da captação de recursos pelo Tesouro Nacional se faz na forma de títulos a taxas flutuantes. São as LFTs, Letras Financeiras do Tesouro, indexadas à taxa Selic. Esses títulos são pós-fixados, com base na taxa de juros diária do mercado interbancário, o que torna muito difícil para o setor privado competir com esses ativos, já que para investimentos em infraestrutura é imprescindível a obtenção de uma parcela substancial dos financiamentos com taxas pré-fixadas e de longa duração.

Outra manifestação do “crowding out” se dá via direcionamento e crédito por meio de linhas especiais que são administradas por bancos públicos e fundos de desenvolvimento regionais ou setoriais. Ao final de 2017 o saldo das operações de crédito direcionado representou quase a metade do mercado de crédito no país: R$ 1,511 bilhões, comparado aos R$ 1,553 bilhões de “crédito livre”. O crédito direcionado reduz a eficácia da política monetária pois a taxa base da economia estabelecida pelo Banco Central passa a afetar apenas uma fração do mercado de crédito. Isso significa que, para atingir um determinado nível de contração monetária, a elevação dos juros requerida é mais elevada.

A terceira grande causa das dificuldades de financiamento é a instabilidade macroeconômica, que exerce forte influência sobre o mercado financeiro, provocando maior volatilidade das taxas de juros. Cada vez que a economia sofre um “choque” macroeconômico, o Banco Central precisa ajustar a política monetária para manter a inflação sobre controle. Estes ajustes monetários são realizados por meio de compra ou venda de títulos públicos para reduzir ou aumentar a oferta de moeda em circulação, o que altera a disponibilidade de crédito na economia e, consequentemente, a taxa de juros.

A quarta causa são os riscos regulatórios, sendo que muitos desses riscos decorrem de falhas na concepção dos projetos, antes mesmo de serem outorgados aos empreendedores. É o que concluiu um estudo do Banco Mundial (2017) que examinou a origem das ineficiências na provisão de infraestrutura no Brasil. São problemas como falhas nos projetos básicos, estudos de viabilidade deficientes, lacunas no levantamento de riscos potenciais do projeto e de medidas a serem tomadas para evitar interrupções ou atrasos durante a implementação.

Enfim, trata-se de um conjunto de problemas que se traduzem em riscos para o empreendedor, que são considerados pelos financiadores elevando o custo de captação. Por essas mesmas razões, o “Project Finance” – modalidade de financiamento que depende da previsibilidade do fluxo de caixa – frequentemente se torna inviável para agentes privados.

O Banco Mundial aponta também que, apesar de as agências reguladoras serem formalmente independentes no Brasil, sua gestão acaba sofrendo interferência política. A indicação de muitos diretores das agências nos últimos anos tem sido pautada por interesses políticos, com pouco apreço pelas qualificações técnicas dos candidatos. Isso reduz a qualidade da liderança das agências, compromete sua independência e eleva a percepção de insegurança quanto às decisões das agências.

Consequências
A baixa taxa de poupança no Brasil, a elevada necessidade de financiamento da União e a instabilidade macro e microeconômica são problemas que produzem, como primeira consequência, a elevação do custo de capital, fazendo com que o Brasil apresente uma das mais elevadas taxas de juros do mundo. Segundo The Economist (2017), numa relação de 50 países em ordem crescente da taxa de juros de longo prazo, o Brasil é o penúltimo, superado apenas pela Turquia. Além disso, o “spread” exigido pelos bancos também é muito alto, encarecendo ainda mais os financiamentos.

Uma segunda consequência derivada desses problemas é a baixa disponibilidade de financiamento de longo prazo.

Empreendimentos que não se encaixam na política de concessão de créditos das instituições oficiais não teriam competitividade diante dos que recebem o crédito subsidiado. Esse problema tem sido um entrave para projetos de geração de energia voltados ao Ambiente de Contratação Livre. Agentes do setor acreditam que esse entrave seja contornável, por meio de contratação futura, estruturada com uma janela móvel de tempo, ou ainda por meio de garantias corporativas, mas, até o presente, ainda não se tem uma solução definitiva para o problema.

O governo tem buscado uma solução estrutural para o financiamento via: (1) redução do crédito direcionado; (2) redução dos subsídios; e (3) promoção do mercado de capitais. Dentre as medidas tomadas nessa direção, a mais emblemática foi a substituição da TJLP, fortemente subsidiada, pela TLP, que passa a ser determinada pelo mercado com base na taxa média trimestral dos leilões de títulos públicos, viabilizando assim uma concorrência entre instituições financeiras.

No longo prazo o efeito dessas medidas será positivo, mas, no curto prazo é fonte de grande ansiedade para o setor elétrico brasileiro pois, durante o período da transição, pode ocorrer interrupção das linhas de financiamento. Além disso, resta ainda uma “herança” da TJLP – que era definida discricionariamente em reuniões trimestrais do Conselho Monetário e que teve em 2014/2015 uma mudança radical no seu padrão de fixação – que tem imposto perdas bilionárias aos projetos contratados nos leilões e financiados a TJLP.

Uma terceira consequência dos problemas relatados anteriormente é a fragilização da estrutura de capital das empresas reguladas. Esse fenômeno é mais fortemente sentido pelas empresas distribuidoras que, nos últimos 7 anos, têm sofrido com os efeitos de uma regulação tarifária demasiadamente austera. Em 2011, a relação da dívida como proporção da capacidade de geração de caixa das distribuidoras (Dívida Líquida/LAJIDA) era de 2,7 vezes. Essa relação foi sempre crescente nos anos seguintes e, em 2017, chegou a 10,4 vezes. A gravidade desse problema é atestada por um estudo recente do Banco Mundial que concluiu que a definição das tarifas de empresas reguladas em níveis insuficientes é a maior ameaça à sustentabilidade do setor elétrico em países emergentes.

Formas de Financiamento

O financiamento das empresas pode se dar por meio de capital próprio ou de terceiros. A captação de capital de terceiros geralmente é a fonte de recursos mais barata, mas apresenta a desvantagem de impor um rígido cronograma de pagamentos. Já a captação na forma de capital próprio é flexível, variando em função dos resultados da empresa, mas a taxa média de retorno esperada pelos acionistas no longo prazo é maior.

Além do capital próprio e de terceiros, há outras formas intermediárias, como a emissão de debêntures eventualmente conversíveis em ações ou a oferta de ações preferenciais. Teoricamente, há uma estrutura de capital ótima para cada empresa que leve em conta o perfil de seu fluxo de caixa, o ciclo de vida do empreendimento e a estrutura de incentivos.

Empresas com fluxo de caixa mais estável podem recorrer a mais capital de terceiros do que outras que apresentam fluxo de caixa mais volátil. O ciclo de vida do empreendimento – que em setores de infraestrutura tipicamente é caracterizado por grande dispêndio de capital inicial (obras e equipamentos), seguido por um longo período de baixo dispêndio e geração de fluxo de caixa positivo – induz a que se busque uma estrutura de capital também variável no tempo.

Nestes casos, é comum uma estrutura de capital começando com o mais alto grau de alavancagem que se reduz posteriormente, quando o projeto estiver operacional. Dá-se o nome de “Project Finance” à estruturação de financiamentos desse tipo, quando o fluxo de caixa futuro a ser gerado pelo projeto e os ativos do próprio projeto são as únicas garantias.
Outro aspecto a ser considerado nas decisões sobre como financiar as operações da empresa é o da governança corporativa.

Há análises acadêmicas apontando que, se não houver um grupo de proprietários mais engajados na gestão da empresa, seu desempenho pode ser prejudicado. Aliás, a crise financeira global de 2008, resultante da securitização indiscriminada de hipotecas, serviu de lição para mostrar a falta que faz o chamado “olho do dono”. Portanto, deve-se evitar a captação excessiva na forma de capital de terceiros ou na forma de capital próprio pulverizado. Embora essas formas de financiamento viabilizem a captação em condições mais competitivas e ajudem a diluir o risco entre muitos investidores, é importante manter um grupo de controle engajado na empresa para manter um grau de escrutínio adequado sobre a gestão.

Quando se trata de capital de terceiros, a indexação dos financiamentos pode ser feita com inúmeros referenciais de mercado. Destacam-se a taxa Selic (chamada de “taxa básica” porque estabelece o piso para a taxa de juros no mercado financeiro), a taxa DI, o IPCA, a TLP (que sucedeu a TJLP), a TR (que define a taxa de juros para Caderneta de Poupança e FGTS), e a Libor (que é a taxa interbancária de Londres). Há ainda a possibilidade de prefixar os financiamentos em termos nominais a moedas estrangeiras, como dólar, euro, yen e cesta de moedas (como o UMBNDES).

Nos financiamentos de curto prazo, geralmente obtêm-se melhores condições com Taxa Selic ou CDI. Em prazos mais longos, o risco associado a taxas variáveis torna-se muito elevado, fazendo com que a indexação com base em IPCA torne-se mais interessante. Quanto à indexação a moedas estrangeiras, é certo que essa modalidade facilita a captação de recursos de investidores externos mas, para o tomador do empréstimo, implica a assunção do risco cambial que, a exemplo de 2015 e 2016, pode ser muito impactante.

No Brasil, nos últimos 10 anos verifica-se que 70% dos recursos para investimento tem origem em capital próprio, sendo 45% de recursos próprios (primordialmente na forma de lucros retidos das empresas), 22% de investimento direto estrangeiro e 3% de emissões primárias de ações. Os recursos de terceiros responderam por 30% dos investimentos privados, sendo 12% do BNDES, 8% do mercado de capitais, 5% de financiamento habitacional e 5% de financiamento internacional.

É importante notar que, somando-se os 22% do investimento direto estrangeiro com os 5% de financiamento internacional, o Brasil recorreu à poupança externa para financiar 27% de seus investimentos nos últimos 10 anos. O montante total de recursos advindo do exterior é ainda maior, pois 45% das transações na Bolsa de Valores de São Paulo (B3) são realizadas por investidores estrangeiros.

Desde 2013, quando o país foi lançado numa longa e profunda recessão, os investimentos privados tiveram forte queda, de 18,3% do PIB, para 14,3% no primeiro trimestre de 2017. No mesmo período, os financiamentos do BNDES caíram de 2,7% do PIB para 0,8%.

Recentemente, combinada com importantes mudanças de política econômica que propiciaram a saída da recessão, houve uma evolução no mercado de capitais, que vem ocorrendo continuamente nos últimos 10 anos.

O BNDES tem reafirmado o compromisso de atender às necessidades dos setores de infraestrutura, preenchendo as lacunas do mercado de capitais. Resta observar como evoluirá o mercado de capitais nos próximos anos, na expectativa de que seja capaz de financiar o setor de energia com volumes de recursos, taxas e prazos compatíveis com as condições de outros países em estágio de desenvolvimento comparável ao brasileiro.

Outro fator dentre os que mais influenciam a capacidade de captação de recursos por empresas reguladas é a definição do custo de capital regulatório empregado pelo regulador para determinação de suas tarifas.

O custo de capital regulatório é o retorno para o capital que o regulador assume ser suficiente para captar os recursos necessários à cobertura dos dispêndios de capital (Capex) da empresa regulada.

Comparando-se o custo de capital empregado pela Aneel com o de agências reguladoras de outros setores, como o de ferrovias, gás, portos, rodovias, telecomunicações, saneamento, aeroportos, observa-se que o setor elétrico apresenta as taxas mais baixas, tanto na geração quanto na distribuição e transmissão de energia.

Há cinco elementos que suscitam as polêmicas mais frequentes sobre a fixação do custo de capital regulatório: a escolha entre parâmetros globais ou locais, o caráter prospectivo ou retrospectivo em que os parâmetros são computados, a definição do horizonte a ser contemplado para o custo de capital, o risco de mercado das distribuidoras e a definição da estrutura de capital.

Medidas para aprimorar o financiamento

Mas, afinal, como melhorar o financiamento? A seção 6 do White Paper 20 aponta 14 caminhos, não excludentes, com diferentes graus de dificuldade na implementação, que levariam à efetiva melhora nas condições de financiamento. Essas 14 medidas foram agrupadas em 3 grandes blocos: a promoção da estabilidade macroeconômica, a mitigação do risco regulatório e o incentivo a inovações no mercado de capitais.

A promoção da estabilidade econômica precisa passar pela contenção de gastos do governo, pela reforma da previdência, pelas privatizações, pela redução do crédito direcionado e pela abertura da economia.

Nem todos os riscos, entretanto, são derivados da macroeconomia. Há uma série de riscos de natureza institucional e regulatória que emergem dos próprios setores regulados. A primeira medida que reduziria o risco regulatório é a melhoria da governança institucional, que estaria sendo buscada por meio de um projeto de lei sobre as agências reguladoras, atualmente em tramitação no Congresso.

Esse tipo de intervenção legislativa talvez ajude, mas seu êxito depende da forma como a lei é implementada. Por exemplo, a lei que criou a Aneel em 1996, atualmente em vigor, estabelece mandatos não coincidentes de 4 anos para os diretores, mas os cargos deixados vagos em administrações passadas desordenaram a intercalação dos mandatos, abrindo espaço para que a atual administração nomeie todos os diretores com base em critérios predominantemente políticos.

Outras medidas que contribuiriam para a mitigação do risco regulatório são: alterar o regime regulatório da “Parcela A”; aprimorar o Mecanismo de Realocação de Energia (MRE); assegurar o nível de remuneração de capital adequado e a flexibilização da contratação de energia. Todos estão detalhados na seção 6.2 do White Paper.

Quanto às inovações no Mercado de Capitais, há 3 recomendações: utilização do “crédito direcionado” para alavancar o financiamento privado, o desenvolvimento do mercado secundário de debêntures de infraestrutura, e a promoção de mecanismos de apoio para a captação de recursos externos. Essas sugestões estão descritas na seção 6.3.

Em síntese, as empresas podem contribuir para a financiabilidade mais eficiente pela escolha das fontes e modalidades de captação de recursos, mas é o Estado o agente que mais pode atuar para aprimorar o financiamento no Brasil, sendo o primeiro passo, simplesmente, a promoção de um ambiente macroeconômico estável e previsível.

Arregimentar recursos financeiros para fomentar o desenvolvimento de um país é um desafio altamente inspirador. Afinal, financiar o investimento é um ato de fé num futuro melhor, com mais e melhores empregos, mais renda e melhor qualidade de vida para toda a população.