Quem tem medo do novo consumidor de energia?

Quem tem medo do novo consumidor de energia?

Nos últimos anos, temos observado transformações nas relações de consumo, em especial o surgimento dos prosumers, por exemplo por meio de plataformas como Airbnb e Uber. São pessoas que buscam alternativas para melhorar a relação qualidade x custo de produtos e serviços e oportunidades de ganhos econômicos. Combinando aspectos tecnológicos e regulatórios, essas mudanças resultaram também na constituição de um novo consumidor de energia, que produz sua própria eletricidade em casa ou por meio de cooperativas.

Mas, apesar das tendências promissoras, mudanças regulatórias em discussão ameaçam essa trajetória. A Resolução Normativa 482/2012, que definiu as regras para a geração distribuída (GD), pode ser alterada fazendo com que o cidadão brasileiro perca a oportunidade de continuar participando da transição para um sistema mais limpo e eficiente, na contramão dos acordos climáticos internacionais e da política energética legalmente em vigor no país.

Na verdade, o novo consumidor de energia é parte de um fenômeno mais amplo de transformações do setor elétrico em escala global. Trata-se de um ciclo virtuoso que combina a consciência quanto aos impactos das fontes convencionais de energia, o desenvolvimento de políticas públicas em prol das metas de redução de emissões de CO2 e avanços tecnológicos. Sistemas de armazenamento de energia, mobilidade elétrica e automação completarão esse ciclo, tornando cada vez mais real a outrora futurista smart grid.

Cientes dessas transformações, alguns grupos tradicionais estão reorganizando seus negócios para garantir sua relevância nesse novo paradigma. Exemplos incluem a Engie, que está concentrando suas operações na área de serviços, e a italiana Enel, que recentemente lançou a iniciativa Enel X para aplicação de novas soluções tecnológicas no setor elétrico global. Em paralelo, assistimos ao crescimento de operações pulverizadas que viabilizam a participação direta do consumidor final nas diferentes frentes das redes inteligentes.

O fato é que, no caso brasileiro, as regras abriram espaço tanto para consumidores isolados como para empresas de pequeno porte, com acesso limitado a capital, atuarem no setor elétrico. Eles estão por trás de boa parte da expansão da geração solar distribuída no país, que cresceu 38% no primeiro semestre deste ano frente ao total instalado em 2017. Em um cenário em que a economia brasileira patina, o segmento contribuiu com investimentos demais de R$ 2,3 bilhões na primeira metade de 2018, de acordo com a consultoria Greener.

Diante dessa evolução, as distribuidoras alarmam sobre a existência de um subsídio cruzado implícito. Segundo a associação que representa o segmento, a cada 400 MW novos de GD, haveria um impacto de 0,1% nas tarifas. Com base nesses dados e nas projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que prevê 3.900 MW de GD até 2026, é possível identificar que o impacto seria de, no máximo, 0,9% em 8 anos! Além desses cálculos serem uma caixa-preta, as distribuidoras se omitem sobre os impactos positivos trazidos por essa tecnologia, além de não divulgarem nada sobre o volume de recursos pagos pelos usuários desses sistemas pelo uso da rede.

O mais curioso, entretanto, é o posicionamento das distribuidoras lutando contra um impacto potencial de menos de 1% nas tarifas de energia em médio prazo, ao mesmo tempo em que defendem reajustes tarifários superiores a 15% ao ano.

Na realidade, o que está por trás desse debate é um esforço das distribuidoras em evitar que os consumidores tenham alternativas que possam melhorar a qualidade dos seus serviços. Ou seja, enquanto o mundo acorda para a necessidade de implantar mudanças em favor da smart grid, com forte participação direta dos consumidores e aumento das fontes limpas na matriz, o mercado brasileiro, que ainda engatinha, sofre a ameaça de ser interrompido ou ter pelo menos postergado ao máximo qualquer tentativa de efetiva inovação no segmento.

Mais do que considerar interesses de grupos específicos, o debate deve observar os benefícios líquidos da geração distribuída para a sociedade brasileira como um todo, bem como as transformações mundiais em curso em prol de um setor elétrico mais eficiente, sustentável e que trate o consumidor como um indivíduo, não como um medidor.