Renda hidrelétrica
Usinas hidrelétricas têm, normalmente, vida útil bem mais longa do que o período necessário para a amortização do investimento realizado em sua construção. Após esse período, os custos da energia gerada são apenas os de operação e manutenção. Assim, entende-se por renda hidrelétrica a diferença entre estes custos e o valor da energia gerada, dado pelo custo marginal de expansão da oferta. Estima-se que essa renda, no Brasil, seja da ordem de R$ 100/MWh.
Diferentes políticas de destinação dessa renda, cujo valor agregado poderá alcançar anualmente valores da ordem de R$ 10 bilhões no final da próxima década, devem ser examinadas com o devido cuidado e antecedência, dado que este é um setor que sempre demandará relevantes recursos financeiros tanto para sua expansão quanto para a reposição de equipamentos e que, por outro lado, existem carências expressivas na oferta e na utilização da energia.
O fato de no Brasil as concessões para aproveitamentos hidrelétricos terem prazo definido não afeta o valor econômico da energia gerada e, portanto, essa renda. Todavia, dado que, findo o período de concessão, essas usinas passam a ser propriedade da União, deixam de integrar as empresas às quais pertenciam e a União pode vendê-las e outorgar nova concessão ao adquirente.
Recentemente usinas que tinham pertencido à Cesp e à Cemig passaram por esse processo. Neste caso, a União recebe um capital que vai ser amortizado pelos consumidores, através da tarifa de venda da energia gerada pela usina. A batida do martelo do leiloeiro renova o valor contábil da usina. Além da União, ganha o comprador, pela diferença entre o valor pago pela usina e seu fluxo de caixa descontado. Mas nada é criado em benefício do setor elétrico, bem como do consumidor.
Entretanto, há outras possibilidades de apropriação da referida renda que favoreçam a maioria dos consumidores e mesmo a sociedade, mas sem incorrer na falácia de confundir valor contábil com o econômico, que embasou o mantra “o mercado já pagou estas usinas” e a MP 579. O consumidor pode ser antigo (a maioria não é), mas a decisão de consumir é sempre nova. Energia é um bem escasso e, portanto, seu uso tem de ser pago. O que se vai fazer com a receita é outra questão, que se quer examinar aqui.
Em princípio, a renda hidrelétrica deveria ser utilizada em benefício dos consumidores de energia elétrica, mediante investimentos para ampliar a oferta ou para cobrir custos setoriais, arcados por todos os consumidores, como os encargos do sistema. Num caso aumentaria a capacidade de autofinanciamento do setor elétrico e no outro reduziria as tarifas. Pode-se ainda justificar que parte desses recursos seja destinada a outros setores de interesse da sociedade, tais como saneamento, saúde e educação.
Caso a concessão tenha caducado e a usina tenha sido incorporada ao patrimônio da União, ela poderia continuar a ser gerida pela empresa de origem como Bem da União Sob Administração. A receita da venda da energia da usina, bem como seus custos de operação e manutenção, mais uma parcela de custos de administração, seriam contabilizados separadamente. A renda resultante caberia à União, que poderia destiná-la à Eletrobrás ou ao BNDES, para fins de investimento ou à CCEE, para cobertura de encargos do sistema.
A concentração desses recursos decorrentes da renda hidrelétrica em um agente da União permitiria que, a cada momento, estes sejam destinados às finalidades em linha com as políticas e o com o modelo definidos para o setor elétrico. A participação societária até determinado limite e/ou as características de financiamento dos projetos devem ser uma decorrência dessas definições.
A eventual escolha da Eletrobrás como esse agente, que pode ser benéfica se corretamente entendida, impõe profundas alterações de papéis e de gestão na empresa, além de ampla recuperação de sua competência técnica e de gerenciamento de projetos, visto que nos últimos anos sua atividade foi concentrada na área financeira e houve significativa perda de quadros.A implementação duradoura dessa proposta requer forte apoio legal, que a caracterize como política de Estado. Tratando-se de recursos da União, pois a renda hidrelétrica provém de usinas de sua propriedade, sua alocação ao setor elétrico dependerá de autorização do Congresso Nacional, onde poderá sofrer significativas alterações, seja para finalidades estranhas a este setor, seja para despesas governamentais genéricas.
Nesses casos a renda hidrelétrica se configuraria como um imposto adicional pago pelos consumidores de energia elétrica. Não reduziria suas tarifas nem os custos de expansão e reposição do setor com maior autonomia financeira dos investidores. Ainda assim, entende-se que faria sentido destinar parte dessa renda a investimentos de interesse social, já mencionados.
Para assegurar que tais recursos permaneçam, em sua maior parte, no setor elétrico, beneficiando os consumidores e a sociedade, será necessário que uma lei os destine a finalidades específicas, como a cobertura de despesas com combustíveis, o que reduziria as tarifas ou a investimentos que contribuam para a sustentabilidade da oferta de energia, tais como os implicitamente previstos nos compromissos assumidos pelo país na COP 21, de 2015, pelo Acordo de Paris.
Mesmo que não contribuam para reduzir as tarifas, tais investimentos reduzirão as externalidades negativas do setor elétrico contribuindo para evitar a mudança de clima, particularmente prejudicial para as populações mais carentes. Ainda assim, caberá atentar para as limitações de caixa do governo federal e para os lépidos jabutis que rondam o Congresso, que poderão reduzir os benefícios que essa renda poderá proporcionar, se bem administrada.