Qual o futuro do mercado de energia elétrica?

Qual o futuro do mercado de energia elétrica?

*Rafael Janiques e Ana Beatriz Dias Sousa

Todos os dias, milhares de pessoas no mundo produzem e consomem energia. Desde os primórdios, a eletricidade acompanha a história e o desenvolvimento da humanidade. Não à toa, o homem estabeleceu relações diretas com a própria natureza para obter recursos, renováveis ou não, que propiciariam a viabilização de atividades cotidianas e a promoção e o desenvolvimento de sua qualidade de vida.

As formas de utilização da energia são das mais diversas e se sobressaem pelas suas infindáveis utilidades e grande eficiência, tanto na geração como no uso, sendo que, por essa razão, torna-se constante a necessidade de geração através de reservatórios e quedas d’água (usinas hidrelétricas); ventos (eólica); raios solares (solar); combustíveis, como é o caso do carvão mineral ou gás natural (termelétrica); ou a própria biomassa, que provém da decomposição de recursos renováveis, como plantas, madeira, resíduos agrícolas, restos de alimentos ou até mesmo o lixo.

Apesar da existência de crises energéticas, que assolaram o país e trouxeram insegurança e preocupação para toda a sociedade, elas acabaram ensejando a adoção de medidas planejadas e coordenadas, de racionamento e planejamento futuro, a fim de compreender a melhor maneira de se gerir um setor tão complexo como o de energia elétrica.

Com o passar dos anos, a mudança foi crescente e a reestruturação do setor passou a criar um novo modelo rumo à eficiência na operação e prestação do serviço aos consumidores, mostrando-se um atrativo a novos investimentos no setor energético do país. As diferentes atividades que eram executadas apenas por uma mesma empresa, excluindo a possibilidade de competição e crescimento de mercado, típico monopólio integrado, no final da década de 90 com objetivo de expansão passou a ser exercido por diversas empresas, por meio da separação entre geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica.

Em contrapartida, foi necessária ainda a criação de alguns órgãos, como por exemplo: a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, com a finalidade de regular e fiscalizar tais atividades dessas empresas; a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, responsável pela contabilização e liquidação financeira das operações de comercialização do setor e a Empresa de Pesquisa Energética – EPE, controlada pelo Ministério de Minas e Energia e com objetivo de realizar o planejamento do setor a médio e longo prazo.

Na sua essência democrática e participativa, estabeleceram-se também a criação de órgãos consultivos, como: o Conselho Nacional de Politica Energética – CNPE, grupo interministerial consultivo da Presidência da República, com atribuições de definir diretrizes e políticas energéticas; e o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico – CMSE, o qual avalia permanentemente a segurança do suprimento de energia elétrica do país.

Em que pese a evolução tenha sido notória, principalmente pelo desafio em separar as funções de geração, transmissão e operação do sistema, altamente complexo e que demanda a preservação do equilíbrio permanente entre produção de energia e carga, cabe observar que ainda há muito mais para evoluir, especialmente frente aos recorrentes problemas sistêmicos e financeiros do setor, muitos deles discutidos no âmbito do Poder Judiciário, bem como na estruturação de soluções para a tão almejada liberação do mercado consumidor.

Sobre a chamada Judicialização do Setor Elétrico, a preocupação desse tema ultrapassa os limites desse mercado e foi pauta até mesmo de enunciados emitidos pelo Fórum Nacional da Concorrência e da Regulação – FONACRE, que tem por objetivo o debate entre magistrados federais, advogados, membros do Ministério Público e demais operadores do direito buscando a discussão e aperfeiçoamento de temas afetos à concorrência e à regulação, a fim de evitar o aumento exponencial de ações judiciais afetas ao setor, o que, por sinal, já vem ocorrendo.

Na mesma medida, a outra proposta ao futuro do setor é a irrefreável transição do mercado consumidor, que não se dá pela simples edição de leis (como muitos acreditam). As particularidades técnicas do mercado de energia exigem uma ação muito forte coordenada do órgão regulador e demais órgãos para que ele se desenvolva, o respeito e cumprimento aos contratos existentes, a garantia de permanente expansão do parque gerador, a financiabilidade dos projetos de geração, o equilíbrio econômico financeiro dos agentes do mercado e a própria fiscalização nessa pulverização de consumidores livres são desafios apresentados. O desejo, por óbvio, é maior liberdade aos consumidores, maior competitividade aos agentes, aumento de produtividade e a racionalização dos recursos do setor.

Em outras palavras, possivelmente daqui há alguns anos a compra de energia poderá ser realizada através do próprio aparelho celular do consumidor. A pergunta a se fazer é se o Brasil está preparado para um avanço dessa magnitude? Ou melhor, se o Brasil está se preparando para esse avanço?

Lembre-se, a principal característica que diferencia o mercado cativo (ACR) do mercado livre (ACL) é que, no primeiro, o consumidor recebe uma fatura mensal (Tarifa de Energia – TE), que inclui o custo de aquisição da energia, o custo da utilização das instalações de distribuição dessa energia (TUSD), além de encargos e tributos. Em contrapartida, no mercado livre a grande vantagem é a possibilidade de comprar energia elétrica diretamente do comercializador ou gerador, por meio da livre negociação das condições comerciais (como o preço, montante e o prazo, por exemplo).

Pois bem. A possibilidade de enxergar o futuro, principalmente através das esperanças trazidas pela Projeto de Lei 1917, reflete-se na migração, total ou parcial, dos consumidores de energia que se encontram no mercado cativo (ACR) para a compra livre de energia (ACL).

Não obstante a isso, a Brasil já vem alterando os critérios objetivos para viabilização da migração dos consumidores do mercado cativo (ACR) para o mercado livre (ACL), como aconteceu com a publicação da Portaria nº 514/2018, posteriormente alterada pela Portaria nº 465/2019, ambas do Ministério de Minas e Energia, as quais já previram a redução gradativa dos montantes mínimos de consumo até o ano de 2023.

Em países que aderiram tal ideia, ao traçar um comparativo entre aqueles que limitaram o mercado livre aos consumidores de maior porte e aos que possibilitaram migração de consumidores de pequeno porte, percebe-se que, nesta última opção, a transição sempre se deu de forma moderada.

Portanto, nos países que abriram seus mercado de energia e que não possuem regra para transição forçada, nota-se que apenas parte dos consumidores efetivamente migra para o mercado livre, percentual esse que é ainda menor no caso dos consumidores residenciais. Isso porque, talvez, a segurança do mercado regulado seja muito maior.

A experiência de muitos países desenvolvidos demonstra que o sucesso das reestruturações do setor elétrico não é simples e que há risco de problemas custosos, de forma que toda cautela é necessária para que não hajam decisões construídas sob a ideia de benefícios apenas momentâneos. Não se pode esquecer que já houve um cenário brasileiro no qual a crise energética era predominante, o qual foi remodelado. Isso porque, não se pode apagar anos de planejamento por uma transição má sucedida, como aconteceu no ano de 2012 com a Medida Provisória 579 (convertida na Lei nº 12.783/2013).

Há que se restringir os abusos de poder de mercado e a condução para uma posição de prejuízo do consumidor e do país como um todo, ante os impactos ambientais e econômicos que poderão ser causados. Por óbvio, isso não significa deixar de ressaltar a importância das fontes renováveis para o futuro da nação, as quais deverão permanecer sendo incentivadas por políticas públicas. Na mesma medida, também não se pode olvidar que o mercado de Gás no país, que após anos de estagnação (desde a edição da Lei nº 11.909/2009) agora caminha a passos largos para o desenvolvimento.

Sendo assim, não restam dúvidas de que a liberação do mercado é uma realidade em si, mas antes da aprovação de legislações que apenas viabilizem as migrações de consumidores a um mercado complexo, arriscado e com diferentes responsabilidades, necessário que problemas estruturais e contratuais sejam primeiro sanados para maior segurança a essa nova perspectiva. Após, nós consumidores poderemos vislumbrar o futuro do mercado.

*Rafael Janiques e Ana Beatriz Dias Sousa são sócio da área de Energia e Regulatório do ASBZ Advogados e respectiva Assistente Jurídica da Área de Energia