20 anos depois, setor aposta em abertura total do mercado livre

20 anos depois, setor aposta em abertura total do mercado livre

Velocidade das mudanças divide opiniões de agentes e especialistas.

Passados 20 anos desde a migração do primeiro consumidor para o mercado livre, o setor elétrico brasileiro está atento a um movimento de abertura de mercado que muitos consideram inevitável, e que poderá ter alcance inédito na história da energia elétrica no país. Nem todos estão satisfeitos com o ritmo proposto nas discussões da consulta pública 33, mas comercializadores, consumidores de maior porte, especialistas e a própria Câmara de Comercialização de Energia Elétrica concordam que, apesar dos desafios, há muito o que comemorar em termos de evolução do ambiente de comercialização livre no Brasil, nas primeiras duas décadas.

A CCEE faz parte do grupo que defende a abertura gradual e equilibrada do acesso ao mercado livre, com a adoção de mecanismos específicos para que se garanta a efetiva separação entre atacado e varejo. Para a instituição, é necessário que fique muito claro para o consumidor quais são seus direitos, mas também quais são as obrigações e os riscos de atuar nesse mercado. “Não só olhar o lado bom, mas olhar o todo”, resume a vice-presidente do Conselho de Administração da CCEE, Solange David. Ela destaca que há uma série de interrelações dentro da cadeia de energia elétrica que terão de ser observadas.

“Abertura de mercado é lindo. Todo mundo quer. Liberdade é um bem por si só. Só que quando você fala em comprar e vender energia e tem uma cadeia por trás com uma estrutura que tem que ser paga, então o que é tudo isso? É diferente da telefonia. A energia elétrica tem algo muito maior em termos de mecanismos e de contas a pagar”, alerta Solange. A executiva lembra que o próprio cenário de mudanças tecnológicas impõe à Câmara uma preparação para atuar com os novos arranjos comerciais decorrentes da reestruturação do mercado de energia elétrica.

O movimento migratório de consumidores – especialmente de médio porte – já vinha em ascensão nos últimos anos, mas 2016 foi o ano em que a CCEE registrou um boom de adesões, saltando de 3.244 agentes em 2015 para 5.655 agentes naquele ano. Essa explosão deveu-se basicamente à movimentação dos chamados consumidores especiais (carga entre 0,5MW e 3 MW) em direção ao ACL. A participação deles no mercado livre quase triplicou de um ano para o outro, passando de 1.203 em 2015 para 3.250 agentes em 2016.

Para Solange David, a simplificação dos procedimentos de medição, com o fim da exigência da instalação do medidor de retaguarda para esses consumidores explica em parte a migração. “Isso reduziu custos e fez com que a própria CCEE e o mercado evoluíssem no processo de adesão. Ele ficou mais simplificado, digitalizado”, afirma.

Simplificação dos processos de medição ajudou a impulsionar os consumidores especiais. Solange David, da CCEE

Ela admite, porém, que as variações do custo da energia no mercado regulado também influenciaram a saída para o ambiente livre. “Agentes querem preços melhores e mais competitivos frente ao mercado regulado. Em 2016, isso fica bastante evidente, com a comparação técnica entre os dois ambientes”, aponta a executiva, ao destacar que houve um amadurecimento do mercado não só para compradores como para vendedores (geradores e comercializadores de energia).

O diretor técnico da PSR Bernardo Bezerra não tem dúvidas quanto à evolução do ambiente livre nesses 20 anos. “O mercado livre tem tido uma trajetória de muito sucesso. Todos os nossos clientes com quem a gente conversa estão muito satisfeitos com o projeto de migração”, afirma o consultor, que destaca ainda o interesse de outros consumidores que estão no mercado regulado em passarem para o mercado livre.

Para o especialista, o êxito do mercado fica claro quando se analisa o crescimento do dois últimos anos. Especialmente entre 2016 e meados de 2017, quando foi registrada migração maciça de consumidores cativos. Nem tudo, porém, é perfeito nessa trajetória, pois existem pontos de atenção que precisam ser avaliados para garantir a sustentabilidade do mercado.

Bezerra observa que grande parte da migração aconteceu porque as tarifas do mercado regulado estavam elevadas, em razão do repasse de custos como risco hidrológico e operação de térmicas; mas também por causa dos incentivos aplicados aos consumidores especiais na compra de energia incentivada. Esses subsídios se dão por meio de descontos na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição.

É preciso racionalidade na decisão de migrar. Bernardo Bezerra, da PSR

“São custos que são alocados para os consumidores do mercado regulado”, alerta o diretor da PSR.  Bezerra afirma que “um aspecto muito importante para a sustentabilidade é que a decisão de migração para o mercado livre seja pela razão correta. E a razão correta para você ir ao mercado livre é que existe um provedor de energia que oferece um produto mais atrativo para o consumidor”.

Ele recomenda a criação de mecanismos para que as decisões dos consumidores sejam tomadas de maneira racional. Proposta resultante da consulta pública 33, a separação entre lastro e energia é fundamental em sua opinião, porque vai permitir a alocação de custos de expansão entre todos os consumidores, e não apenas aos do mercado regulado. Outra alteração importante antes da abertura é a mudança do subsídio às fontes incentivadas, substituindo o desconto na tarifa fio por um mecanismo de mercado, por exemplo.

Para a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia é possível garantir em quatro anos o acesso total ao mercado livre a todos os consumidores do país, mas falta vontade política para isso. “Falei isso com muita clareza com o ministro [de Minas e Energia] Moreira Franco. Quando ele me perguntou se era possível fazer alguma coisa infralegal, eu fui muito claro: ‘ministro, só falta alguém ter coragem de chegar aqui e fazer um decreto para abrir o mercado. No outro dia as coisas começam a caminhar’”, contou o presidente executivo da Abraceel, Reginaldo Medeiros.

O substitutivo do deputado Fabio Garcia ao projeto da portabilidade da conta de luz prevê que a partir de 2028 todo consumidor atendido em baixa tensão teria o direito de escolha. “A nossa visão é que é possível fazer isso em quatro anos, sem afetar nenhum contrato das distribuidoras”, afirma Medeiros.

É possível abertura total do mercado em quatro anos. Reginaldo Medeiros, da Abraceel

O executivo da Abraceel defende a mudança do modelo atual, discutidas na CP 33. Segundo Medeiros, ele atende a um setor elétrico tradicional, que pensa apenas em repassar custos ao consumidor. “O mais importante de tudo para o consumidor é que essas reformas sejam implantadas rapidamente, e que elas deem liberdade e obriguem as empresas do setor elétrico a competirem entre si. Ninguém é contra a ideia de abrir o mercado, desde que seja daqui a muitos anos”, afirma o executivo. Para o presidente da Abraceel, quem conseguiu se libertar dos “grilhões das distribuidoras” obteve uma redução de 23% nos preços da energia ao longo do tempo, com queda de R$ 80 bilhões do custo Brasil.

O presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres, Edvaldo Santana, afirma que houve crescimento do ACL, apesar dos obstáculos, e, surpreendentemente, de forma mais acelerada no período em que havia maior resistência do governo, a partir de 2004. “O mercado cresceu 30%, e hoje corresponde ao mercado total da Argentina. Isso é muita coisa”.

Santana ressalva, porém, que o setor chegou a um ponto de inflexão, porque, apesar do volume, o mercado está completamente parado, sem conseguir liquidar suas operações no curto prazo. Defensor do livre mercado, o executivo também acredita que a abertura poderia ser mais rápida, mas não há como fazer isso sem provocar desequilíbrio em um dos lados da balança. “Tem tanto custo que abrir o mercado muito rapidamente desequilibra do lado regulado. Não tem quem cubra todos os custos que já existem comprometidos. É custo de energia comprada, custo da conta de bandeira tarifária. É tanto custo que isso restringe uma maior velocidade na migração.”

Abertura total deve evitar desequilíbrios no sistema. Edvaldo Santana, da Abrace

É justamente esse custo que tem afugentado os consumidores especiais do mercado regulado. “Por incrível que pareça, hoje é o ambiente livre que dá mais previsibilidade ao preço da energia. Se você compra energia de uma distribuidora, você não sabe quanto vai ter aumento, se vai ter redução. No ambiente livre você sabe exatamente o que vai acontecer com o preço da sua energia no ano que vem”, afirma Santana. Ele critica, porém, os subsídios e diz que a manutenção deles cria uma situação insustentável, que terá de ser repensada.

O presidente da Associação Brasileira de Consumidores de Energia, Carlos Faria, também destaca que no ambiente livre o consumidor pode estabelecer a melhor base para contratar sua energia e saber exatamente o que vem pela frente. O dirigente acredita que já passou da hora de rever o modelo comercial do setor elétrico e garantir a abertura do mercado. “Vai ter mais concorrência, mais expansão e maior competitividade na geração, distribuição, transmissão e comercialização. E é tudo isso o que o consumidor quer.”

Faria acredita, no entanto, que essa abertura não pode ser imediata, porque há etapas a serem cumpridas para evitar prejuízos às distribuidoras, aos seus consumidores e também ao gerador que tem contratos de longo prazo. “Precisa ter uma fase de transição para que, gradualmente, a gente chegue nessa abertura de mercado, se possível em 2024. Eu sei que está previsto para 2026, mas é possível antecipar isso.”

Abertura tem que ser feita gradualmente, se possível, visando 2024. Carlos Faria, da Anace

 

Para o presidente da Anace, o aumento do número de consumidores livres (a partir de 3 MW) e especiais é uma prova de sucesso do mercado. Ele argumenta que o consumidor especial acaba tendo o desconto na tarifa de uso do sistema de distribuição ao comprar energia de empreendimentos de fonte incentivada, mas também paga uma energia mais cara que o das fontes convencionais no ambiente livre. Faria afirma que “os subsídios são importantes, mas precisam ter começo, meio e fim.”

Pioneirismo

Boas histórias não faltam a quem foi pioneiro na área de comercialização de energia elétrica, como Walfrido Ávila, presidente da Tradener Comercializadora, e Paulo Cézar Tavares, sócio presidente da Sol Energias. Ávila fez história ao assinar há 20 anos o primeiro contrato de migração de consumidor para o mercado livre. Ainda na Eletrobras, Tavares foi um dos primeiros engenheiros do setor a perceber o potencial do mercado, em um período no qual boa parte do setor ainda era estatal.

“Hoje a gente vê que o mercado mudou bastante. É maduro. Todo mundo já entendeu que o que mercado livre é solução, não é um capricho”, afirma o dirigente da Tradener. Ele conta que a primeira migração foi um processo muito difícil, por causa da burocracia. O contrato levou dois anos para sair, relata Ávila.

Todo mundo já entendeu que o mercado livre é solução, não é capricho. Walfrido Ávila, da Tradener

O processo ainda hoje é burocratizado, na opinião do executivo, porque o consumidor tem um contrato com a distribuidora e é obrigado a comunicar a migração com seis meses de antecedência. Para o comercializador, as empresas do segmento têm crescido, mas o mercado ainda anda a passos lentos.

Ávila classifica como “burrice” a proposta de abertura gradual do mercado livre. “Não tem outro nome. A gente não precisa de nada. Precisa operar com inteligência, e não com burrice para emperrar tudo”, afirma. Ele usa a mesma palavra para classificar os subsídios do setor, e acha que com o mercado aberto eles não serão necessários.

Tavares, que tem como sócio na empresa o grupo Equatorial, lembra que nos anos 1990 era assistente executivo da diretoria de Operações da Eletrobras, quando organizou uma visita à Inglaterra com executivo de algumas empresas de distribuição para conhecer de perto o processo de desregulamentação do mercado de energia promovido pela então primeira ministra Margareth Thatcher.

“Comecei a perceber que o mercado de energia ia se abrir. E cheguei na época a fazer um documento para o Mário Santos [então diretor da estatal], que era a criação de uma área de comercialização de energia na Eletrobras”, conta o executivo. Tavares admite que na época a estatal não estava preparada para isso.

Abertura tem que respeitar os contratos vigentes. Paulo Cézar Tavares, da Sol Energias

Presidente da Celpe em 2001, quando a distribuidora pernambucana foi privatizada, Tavares criou a Guaraniana Comercio e Serviço, uma comercializadora do grupo Guaraniana, antecessor do Neoenergia. O executivo passaria depois pela comercializadora do grupo CPFL em São Paulo, onde trabalhou a partir de 2002.

Pela sua experiência, ele acredita que não tem como promover a abertura total e imediata do mercado livre. “Tem alguns princípios básicos. Um deles é que tem que respeitar os contratos, porque tem outros agentes do setor. Tem que respeitar os contratos vigentes entre geradores e distribuidores.”