A anacrônica e custosa energia assegurada

A anacrônica e custosa energia assegurada

O conceito de energia assegurada (sic) foi introduzido no sistema elétrico brasileiro no final do século passado durante o processo de sua reforma. Ele tem sua origem no conceito de energia firme utilizado pelo setor quando operava no regime de monopólios territoriais. Esse conceito tinha por objetivo viabilizar a gestão cooperativa do acúmulo de água nos reservatórios durante o período chuvoso para seu uso futuro na geração de eletricidade.

Dessa forma, procurava-se maximizar o uso da capacidade instalada das centrais e eliminar o risco de racionamentos no suprimento de energia nos períodos de estiagem. A justificativa para essa cartelização no uso da água era que seus benefícios superavam amplamente seus custos. O controle das tarifas elétricas pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) procurava evitar que o uso do poder de mercado pelas concessionárias lhes permitisse usufruir de ganhos abusivos. Essa solução entrou em colapso na segunda metade da década de 1980, quando a inadimplência se tornou estratégia preferencial das concessionárias para garantir seus resultados financeiros.

A reforma do setor elétrico adotou encaminhamento radicalmente distinto do utilizado até então para a gestão da água dos reservatórios. Adotando o pressuposto de que a concorrência no parque gerador eliminaria as ineficiências econômicas da gestão cartelizada, a reforma buscou solução concorrencial para a gestão do risco hidrológico. Sem encontrar solução consensual para esse problema que viabilizasse o deslanche das privatizações do parque gerador, a reforma preservou o regime cartelizado para a gestão dos reservatórios no ambiente elétrico concorrencial. A cessão dos direitos de comercialização de uma parcela da energia gerada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para o parque gerador, sob a forma de energia assegurada nos contratos de concessão, foi o corolário dessa solução.

Ao ONS, entidade sem fins lucrativos, foi delegada a gestão dos reservatórios com a responsabilidade de arbitrar o seguinte dilema: usar a água acumulada nos reservatórios para evitar aumentos tarifários decorrentes do despacho térmico ou, alternativamente, promover esse despacho com o objetivo de preservar a água acumulada nos reservatórios para uso futuro, evitando racionamentos de energia nos períodos de estiagem?

O uso da água acumulada nos reservatórios permite reduzir gastos com combustíveis, porém esse uso aumenta o risco de o parque hidrelétrico não ser capaz de gerar a energia assegurada nos contratos de concessão. Quando essa situação ocorre, as hidrelétricas devem adquirir de termelétricas a energia assegurada faltante a preços muito superiores aos que foi comercializada a energia de seus reservatórios esgotada no passado.

Nessas circunstâncias, os ganhos financeiros pelo uso da água dos reservatórios nos períodos chuvosos não compensam as perdas com a compra de energia das térmicas nos períodos de estiagem. A experiência prática tem demonstrado que, cedo ou tarde, isso tem ocorrido.

A disputa entre os agentes do mercado elétrico pelo repasse das perdas financeiras decorrentes dessas situações tem sido judicializada. Esse problema está na raiz da crescente inadimplência na liquidação dos contratos registrados na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), cuja continuidade tende a desorganizar o funcionamento do sistema elétrico como ocorreu no final do século passado. A progressiva queda na qualidade dos serviços elétricos a que assistimos atualmente é sintoma claro dessa trajetória preocupante.

É consensual a absoluta necessidade de equacionar essa questão para garantir o funcionamento economicamente saudável do sistema elétrico. Contudo, são fortes as resistências à proposta de acabar com a gestão cartelizada dos reservatórios hidrelétricos. Essa solução produzirá perdas e ganhos cujas estimativas dependem de diversas variáveis, para as quais é muito difícil antecipar comportamentos futuros.

Os agentes do mercado solicitam o socorro do governo para superar a judicialização. O governo acena com os recursos obtidos pela venda das cotas de energia da Eletrobras a preços de mercado como instrumento para compensar perdas passadas dos agentes com a má gestão dos reservatórios. Essa solução apenas escamoteia o problema, sendo previsível o repasse desse incremento de preço para as tarifas dos consumidores. Preservado o conceito de energia assegurada, o fantasma da judicialização da liquidação dos contratos ressurgirá em futuro não muito distante.

A solução duradoura para esse problema consiste em abandonar a oferta de energia assegurada nos contratos de concessão. A transformação na composição do parque gerador ocorrida após a liberalização do mercado elétrico, com a entrada em operação de centrais eólicas e térmicas, tornou irrelevante o papel dos reservatórios na redução do risco de racionamento de energia. Atualmente, a tarefa central dos reservatórios é minimizar o consumo de combustíveis nos períodos chuvosos, ficando para as termelétricas a função de garantir o suprimento de energia nos períodos de estiagem.

Nesse novo contexto, não é mais necessária a cartelização para evitar o risco de racionamento de energia. A gestão dos reservatórios hidrelétricos, sob limitações estritas da Agência Nacional de Águas (ANA) quanto à preservação de níveis adequados para os usos consuntivos da água (!), pode ser delegada aos proprietários das centrais que passariam a assumir os riscos econômicos dos despachos térmicos. Como mecanismo de transição que facilitará a aceitação do abandono do cartelização, pode ser adotado o regime de custo do serviço incentivado para as centrais hidrelétricas em operação até o final de seu período de concessão. Nesse regime, as centrais hidrelétricas têm garantida um taxa de retorno prefixada com limites mínimo e máximo, sendo esta última fruto da boa gestão financeira da água que flui pelo reservatório da central.