A malograda intervenção desnecessária no setor elétrico

A malograda intervenção desnecessária no setor elétrico

O certo que a Portaria 455 suscitou discórdia desde sua edição, pois agregou às costumeiras divergências ideológicas entre o setor privado e um governo sabidamente intervencionista.

 

Encerrou-se, depois de quase seis anos, uma disputa antiga, de grande interesse do mercado. O Ministério de Minas e Energia publicou, na quarta-feira, 4 de julho, a Portaria 269, pela qual determina a revogação da Portaria MME 455/2012, cuja publicação marcou o início de um dos embates mais significativos entre mercado e poder concedente.

 

Portanto, embora nunca tenha sido implementada efetivamente, vez que impedida por decisão judicial, que culminou no acordo de revogação pelo MME e retirada das ações pelos agentes e seus representantes, a Portaria 455, de agosto de 2012, é o reflexo maior de uma era marcada por decisões setoriais tomadas de forma personalíssima e autoritária, sem qualquer diálogo com o mercado.

 

Para lembrar, essa Portaria de triste memória instituiu o registro obrigatório de contratos de compra e venda de energia elétrica antes do início da semana de entrega de energia (“registro ex ante”) e determinou que no ato de registro de contratos, constasse a informação sobre o preço da energia negociada. Ademais, essa obrigatoriedade valeria inclusive para todos os negócios de compra e venda de energia até então firmados, ou seja, até para contratos vigentes.

 

Considerando que os contratos de então, como os de hoje, podem ser registrados depois do consumo de energia verificado, para sua cobertura (“registro ex post”), tampouco têm seus preços publicamente informados, a alteração súbita das regras, que em muito alterava a forma de negociar conhecida e praticada por todos, causou grande revolta entre os agentes do mercado.

 

Acresce-se ao teor das alterações, a forma com que foi praticada, por meio de uma Portaria ministerial, emitida sem aviso prévio e sem consulta pública. Embora de autoria do MME, a paternidade do ato foi atribuída a terceiros, sem ter sido, contudo, publicamente assumida por ninguém, como é comum em iniciativas malfeitas.

 

O certo que a Portaria 455 suscitou discórdia desde sua edição, pois agregou às costumeiras divergências ideológicas entre o setor privado e um governo sabidamente intervencionista, um elemento adicional, pois desnudou um confronto institucional entre o MME e a CCEE de um lado, e as áreas técnica e jurídica da ANEEL de outro.

 

O desentendimento, diga-se, não era só com relação à imposição de medidas consideradas descabidas, mas também porque o MME entendia necessário, e assim o fez, duplicar o papel de regulador, antes exclusivo da Agência.

 

O posterior ingresso da Abraceel na justiça, a propósito, usou esse argumento, ou seja, a superposição de funções e competências, uma vez que o MME determinou algo que competia à ANEEL fazer, conforme dispõe o art. 2º da Lei da ANEEL (9.427/1996), em flagrante ofensa à disciplina setorial e à estabilidade das regras.

 

O fato é que as áreas afetas à matéria na ANEEL, a Superintendência de Estudos de Mercado – SEM (esta por meio da Nota Técnica 161-SEM/ANEEL), e a Procuradoria Federal (Parecer 624/2013) explicitamente posicionaram-se contra o ato. A SEM observou que os principais problemas alegados pelo MME, a inadimplência no Mercado de Curto Prazo – MCP e a sinalização correta para expansão, não eram resolvidos ou sequer minimizados com o registro ex-ante. Questionava qual o objetivo da intervenção e porque o Estado deveria unilateralmente estabelecer normas restritivas à operação do mercado livre. Sobre o registro de preços, ponderava que não havia nenhuma evidência de que a publicação de índices de preços no ACL teria o condão de acirrar a concorrência e induzir a redução de preços nesse ambiente, ou ainda de incentivar ou facilitar a migração de consumidores em potencial, conforme alegado.

 

Alertava ainda, e aí não havia necessidade de bola de cristal, como se viu a seguir, que se podia esperar uma nova onda de judicialização se efetivadas as determinações da Portaria 455 em sua inteireza, especialmente porque os interesses que buscariam tutela jurisdicional, além da alegação uniforme (talvez unânime) de vícios atinentes à Portaria, em sua grande maioria estariam voltados ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados.

 

A Procuradoria Federal, de seu lado, opinou pela impossibilidade de aplicação da Portaria aos contratos em curso, sob pena de violação dos princípios da Boa Fé Objetiva e da Segurança Jurídica.

 

Importa destacar que, na esfera privada, além de ingressar em juízo, a Abraceel também registrou publicamente sua inconformidade com o teor da Portaria. Em 12 de março de 2014, por meio de carta aberta à Presidente Rousseff, intitulada “Sobre o Desnecessário Aumento de Custos de Energia Elétrica para a Indústria”, a Abraceel destacava as enormes incertezas e preocupações geradas pela Portaria 455 e as decisões na área energética que se caracterizavam por inadequadas avaliações a respeito do alcance de medidas, seus impactos sobre os agentes econômicos, o aumento de custos aos consumidores e o desrespeito aos contratos. Ponderava ainda sobre os inúmeros apelos feitos por dez associações às autoridades setoriais para que a proposta fosse repensada, infelizmente sem êxito.

 

Da ótica da governança setorial, as posições técnico/jurídicas internas da ANEEL são interessantes ainda hoje, pois demonstraram ser possível separar as atuações do Poder Concedente e da Agência Reguladora. Quando se fala de captura do Regulador pelo Executivo ou pelo Legislativo, e de perda de sua autonomia, o dissenso aberto à época sugeriu a possibilidade do contrário, pois as áreas técnicas da Agência, embora sem o apoio formal da Diretoria, que hesitou em contrariar o MME, não apenas não se furtaram a contrapor-se a diretrizes espúrias, como o fizeram de maneira transparente e com argumentos consistentes e fundamentados.

 

O desenlace dessa questão deixa uma lição a todos, principalmente aos tomadores de decisão na esfera institucional, que os atos praticados por subterfúgios, sem a devida discussão com a sociedade e sem a análise de seus impactos sobre os agentes envolvidos e sobre a atividade econômica, geram enorme gasto de recursos que poderiam ser evitados se usados os canais competentes, as práticas corretas e o diálogo. A Portaria 455, a Resolução CNPE 03 e a MP 579, todos da mesma época, por sinal, firmaram-se como exemplos negativos que não devem ser repetidos.