Ausência do Estado e perdas de energia
Um dos fatores que encarecem o fornecimento de energia elétrica no Brasil é o alto índice de furtos de energia. Muitos consumidores fazem ligações clandestinas ou manipulam seus medidores para roubar energia das redes de distribuição, o que prejudica a qualidade do fornecimento e encarece o serviço.
As distribuidoras de energia são responsáveis pela ligação das unidades de consumo, pela instalação e manutenção dos medidores e pela emissão das faturas. Portanto, o furto de energia elétrica é um problema que extrapola a responsabilidade da distribuidora e é fruto da ausência do Estado, que resulta na falta de segurança e na ausência de mecanismos para coibir a informalidade. A Aneel, agência reguladora do setor elétrico, entende a natureza do problema, tanto que, no processo de revisão tarifária, define o nível de Perdas Não Técnicas (PNTs, como ela se refere a essas perdas comerciais derivadas de furtos e fraudes) esperado em cada área de concessão, em razão de suas características socioeconômicas.
O nível de PNTs admitido para cada distribuidora é definido a partir de um índice que busca refletir o grau de “complexidade socioeconômica” da área de concessão da distribuidora. Esse índice é estimado a partir de modelos estatísticos que levam em conta os seguintes fatores de cada área de concessão: 1) proporção dos domicílios em condições “subnormais” ou “precárias”; 2) cobertura de outros serviços públicos (tais como saneamento e coleta de lixo); 3) nível de pobreza ou desigualdade; 4) cobertura de programas sociais (como a Tarifa de Baixa Renda); 5) inadimplência do setor de crédito; e 6) nível de violência. Com base nesse índice, a Aneel estabelece metas de redução das PNTs para cada distribuidora.
A ideia de utilizar modelos estatísticos para avaliar o grau de complexidade socioeconômica é boa, e a sistemática de definição das tarifas de energia com base nas PNTs estipuladas a partir do índice de complexidade socioeconômica proporciona bons incentivos para as empresas de distribuição se empenharem no combate ao furto de energia elétrica.
Os frutos desta regulação são observáveis. Entre 2008 e 2017 as PNTs caíram de 16,3% para 14,1%, algo a ser comemorado, especialmente por causa da crise econômica dos últimos anos.
Apesar desta bem-sucedida redução de 13,2%, as distribuidoras continuam sofrendo grandes prejuízos com as PNTs, pois as metas estabelecidas pelo regulador requeriam uma redução de 30,7% no mesmo período. As metas iniciais já eram, em média, 12,8% inferiores às PNTs observadas em 2008, e foram reduzidas em mais 17,9% ao longo destes dez anos.
A consequência destas metas excessivamente ambiciosas é que só 1/3 das 54 distribuidoras conseguiu alcançálas, o que tem levado ao questionamento da adequação dessas metas. Na prática, um exame criterioso dos modelos estatísticos empregados para estimar o índice de complexidade socioeconômica demonstra que seu poder explicativo é muito baixo. Logo, uma boa dose de cautela é necessária na determinação de metas a partir desses modelos.
Além disso, vê-se em algumas regiões o surgimento de novas dinâmicas (não captadas pelo índice de complexidade socioeconômica) que prejudicam o combate às PNTs. O surgimento de áreas com domínio territorial por milícias e narcotraficantes na área metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, impede que as empresas de distribuição elétrica atuem sem pôr seus funcionários em risco. A Aneel tem mostrado sensibilidade a este problema e adotou tratamento diferenciado para estas “áreas de risco”, como pode ser constatado no último reajuste tarifário da Enel Rio, discutido na Audiência Pública 55/2018.
A ausência do Estado na provisão de serviços públicos básicos, como segurança e educação, é um problema com ramificações profundas para a sociedade. Não é possível avançar em certas dimensões sem antes atender a essas necessidades básicas.
É por isso que a revisão geral da metodologia de definição de PNTs é necessária para determinar metas mais compatíveis com a realidade, preservando a eficácia da regulação.