Carta aberta sobre o projeto de lei de privatização da Eletrobras apresentado pelo Governo *
(*) a carta foi editada sem alteração do seu conteúdo e com a aprovação do autor.
O envio do projeto de lei de privatização da Eletrobras, empresa cuja trajetória acompanho desde 1964 quando entrei no BNDES, na qual trabalhei de 1972 a 1994, nos cargos de diretor, CEO e presidente do Conselho de Administração (neste último cargo duas vezes – 2012 e 2016/2017) me impõe uma manifestação pública.
A composição do Conselho da Eletrobras – eleito em 25 de julho de 2016 – significava uma coisa: privatização, com uso da maior experiência histórica neste tipo de processo. Para que? Para valorizar o patrimônio público e assegurar o funcionamento adequado para os consumidores pós -privatização.
Mas não foi o rumo que as coisas se tomaram. Há uma cegueira em reconhecer que a Eletrobras, embora seja uma holding empresarial num plano, noutros é um órgão com funções constitucionais de governo: um banco de investimento, um fundo de investimento, um centro de pesquisa, dentre outras coisas. É financiadora de políticas estratégicas governamentais (universalização do atendimento, Procel, nuclear) e poderosa transferidora de recursos entre regiões, reduzindo desigualdades regionais como nenhuma outra política pública logrou alcançar.
O Conselho eleito em 2016 teve logo de início que se debruçar em questões operacionais da holding e controladas, onde por razões políticas muitos dirigentes de sofrível desempenho foram mantidos, ao tempo em que ao Conselho – por dificuldades legais ou burocráticas – não teve à disposição meios adequados de apoio, sempre engessado pelas inflexibilidades e controles das estatais que não previne a corrupção, mas assegura a ineficiência.
Também, por razões óbvias e da credibilidade de seus membros, o Conselho especialmente se empenhou no apoio às ações executivas ligadas ao arquivamento dos relatórios 20F (e criação de condições de compliance para que as auditorias se sentissem confortáveis em dar pareceres aprovando as demonstrações financeiras, por exemplo) e efetuando o acompanhamento, no cabível, das recomendações da Comissão de Investigação, tudo para evitar que a Eletrobras fosse excluída da Bolsa de Nova York (o que implicaria no vencimento imediato de 30 bilhões em dívidas).
A partir de 12 de outubro de 2016 – com os Balanços de 2014 e 2015 aprovados pela SEC e BNY e devidamente arquivados, foi como se desse um sinal para liberar as comportas para pressão do maior fisiologismo sobre as estruturas setoriais.
Apesar de promulgada a Lei das Estatais, que devia restringir o ímpeto do Congresso e do Executivo de indicar gestores despreparados, o Conselho teve que se dedicar a uma ferrenha resistência às abundantes tentativas de nomeações políticas para cargos no setor (onde apareciam nomes muito impróprios em matéria de indicações de conselheiros de Itaipu, Belo Monte Norte Energia), distribuidoras, e outras empresas.
Naturalmente estas nomeações eram vinculadas a manter a base de apoio do governo, segundo ouvi de um ministro: “para fazermos as reformas que o Brasil precisa”.
Mais parecia que a causa era manter o foro privilegiado dos próprios padrinhos políticos dos indicados.
Evidenciou-se duas correntes dentro do Conselho da Eletrobras. Ambas convergiam no tocante a rigidez de critérios na nomeação de Diretores Executivos. Mas uma delas era mais tolerante que a outra no tocante a indicação de Conselheiros sob a justificativa –para mim inaceitável! – que, assim como um grande acionista pode indicar um filho não capacitado para o Conselho da sua empresa, o Governo também pode indicar quem julga adequado aos seus propósitos nas suas empresas.
O Conselho algumas vezes teve que lidar com informações precárias sobre alguns candidatos. Mas, ressalto, em todos os processos do gênero, sempre houve no relacionamento com o Conselho.
Depois de alguns entreveros, mantidos discretos para não atrapalhar o dedicado trabalho operacional que o Presidente Executivo conduzia com qualidade, na Assembleia de abril de 2017, quando aos 2 balanços em atraso anteriormente aprovados somou-se a aprovação e sucessivo arquivamento do balanço do ano de 2016, saíram ao final dos seus mandatos, os conselheiros José Luiz Alqueres, Mozart Araujo (ex-Presidente da Chesf) e Ana Paula Vescovi da STN (Secretaria do Tesouro Nacional). A Conselheira Elena Landau saiu dois meses depois.
Até aí – 12 meses depois da posse, em julho de 2016 – nada de relevante no tocante ao progresso das privatizações havia ocorrido, o que era altamente desestimulante para o Conselho (que cobrava providências e temia quanto ao rumo certo das coisas, entregues a outros órgãos federais).
Em maio de 2017, em Brasília, sem que me pareça ter havido qualquer conhecimento prévio por parte da Eletrobras, o MME apresentou a Consulta Pública nº 33 com propostas diversas, e omissões de pontos importantes (entenda-se algo conjunto entre MME, MF, Casa Civil e as vezes ANEEL).
Incluía uma problemática “descotização” de usinas da Eletrobras, invenção esdrúxula, visando passar dinheiro, a título de pagamento de outorga para União, de usinas cujas concessões já estavam legalmente outorgadas à Eletrobras (quebrando de vez as geradoras da estatal, o que aparentemente não era motivo de preocupação do Governo, cujo pensamento dominante ao final de 2017 era ele próprio não estar quebrado).
O Presidente da Eletrobras, pego de surpresa, creio, voou para Brasília e mostrou o absurdo. Anunciou-se então, às pressas – a título de compensação – outra ” criativa” maneira de fazer caixa: a diluição do controle sob forma de “corporation” (um modelo de sociedade anônima raríssimo no Brasil, que leva ao paradoxo de fundos de investimento e investidores não estratégicos deterem o comando de um negócio de longo prazo, onde é vital o compromisso com a sustentabilidade a longuíssimo prazo e outras complexidades).
A expressão latina “Cui bono?” (a quem interessa?) permite sugerir quem possa disso se estar beneficiando do ponto de vista do mercado de capitais…
“Brasília” passou a se achar tão brilhante com a solução que os jornais anunciavam na ocasião, de como superar as dificuldades de aprovar esta ideia… Na verdade dobraria as resistências no Congresso com as seguintes medidas:
- aprovaria emendas de deputados de Minas Gerais,
- usaria nomeações para cargos em Furnas e outras empresas;
- alocaria dinheiro para recuperar o Rio São Francisco como um agrado para a bancada nordestina (que beleza…);
- a criação de uma estatal para ficar com as obrigações da Eletronuclear (R$ 15 bilhões a R$ 30 bilhões) e outra para Itaipu (minimizando complexidades do Tratado Brasil Paraguay e a Ata das Cataratas).
Em suma, os encarregados de resolver os problemas criados ou acentuados por antigos detentores desses mesmos cargos, sem ter experiência ou aprofundamento sobre o assunto, se arvoram em legislar para um setor complexo e em situação crítica.
A sequência do “vai para lá e vai para cá” de quem fica com as dívidas das distribuidoras, que por hora impede sua privatização, é outra prova desta incompetência e falta de cultura. Vinte meses depois de uma Assembleia da Eletrobras aprovar a privatização, o governo parece surpreendido com o montante das dívidas e em quem empurra-las. Ou na Eletrobras, ou na União, porque – imaginem só a surpresa – ninguém quer comprar as distribuidoras face o lastimável estado que a politicagem as deixou sob complacentes gestões anteriores à atual da Eletrobras.
Podemos especular muito sobre o caminho, mas que o destino final desta mega-dívida é o bolso dos consumidores, não resta dúvida…
Estatais não podem fazer o que uma empresa privada faria: chamaria seus credores e proporia um hair-cut (abatimento) de 99% no valor das dívidas. Luta-se então, dentro do Governo, não para resolver o problema, mas apenas para ver quem no final, sendo politicamente o mais fraco, ficará com a conta.
Imaginem só o que não fariam ou farão os minoritários da Eletrobras, podendo provar a gestão temerária e incompetente das distribuidoras federalizadas (sem falar na de algumas sociedades de propósito específico de geração e transmissão)? No mínimo pedirão o direito de recesso a valor patrimonial, fora isso e fora aquilo.
Além desses detalhes, não é só nas distribuidoras que o problema existe. Acrescenta o passivo nuclear, os R$ 19 bilhões de impairments no balanço da Eletrobras, o indefinido GSF, possíveis class actions, judicializações variadas, e a conta do buraco setorial pode subir acima da centena bilhões de reais, grande parte aterrissando na Eletrobras.
O que está ocorrendo neste setor crucial para economia? Ignorância…? Instinto de sobrevivência, perspectiva de lucros de uma classe de agentes ou de acionistas?
Provavelmente um pouco ou muito de cada uma dessas coisas e falta de coragem do governo em varrer os inumeráveis focos de fisiologismo nele existentes.
Todas notícias que saem são desencontradas, factóides que se sucedem, prazos impraticáveis, troca de cartas entre União e empresa, votos contraditórios de Conselheiros, assimetria de tratamento com Petrobras, delações da Lava-Jato referentes aos projetos do setor elétrico no STF, os políticos mais implicados dando as cartas nas nomeações em agências reguladoras e por aí vai.
Quem olha para horizontes mais longos, como as boas empresas privadas do setor, está usando este quadro confuso, procurando fortalecer suas posições.
Quem olha de fora e vê os significativos ganhos potenciais de eficiência também pensa em investir, como aliás tem feito chineses, indianos, portugueses, espanhóis, italianos e alguns fundos de investimento e grupos brasileiros.
Tudo isso num ambiente vulnerável do ponto de vista político, econômico, institucional e no limiar de profundas mudanças tecnológicas com a introdução cada vez mais rápida de geração distribuída, sustentabilidade, gestão de bacias hidrográficas, redes inteligentes e convergência gás/eletricidade, além da expansão das comercializadoras. Tudo isso superficialmente contemplado nas mudanças legais propostas.
Mas o que mais preocupa é o “curtoprazismo” de onde parece que brotam “as soluções” para fechar contas do balanço nacional. Um erro. Não há balanço fechado à tapa, que compense a falta de credibilidade do gestor.
Não há um desenho lógico do que se busca. Numa metáfora, a Eletrobras virou uma grande construção central, cheia de infiltrações e acrescida de dezenas de puxadinhos, com uns poucos programando celebrar seus churrascos na laje.
Resultante disso, operamos de forma estranha nosso sistema, os reservatórios sempre baixos, mesmo sem estiagens fora do comum e hoje possuímos uma das mais elevadas tarifas do mundo.
Continuam, felizmente, muitos a trabalhar para que mais cedo ou mais tarde o setor reencontre seu rumo. É algo meio obsessivo para os profissionais deste setor acostumados a prover a disponibilidade do seu produto em cada casa, em cada indústria, 24h por dia, 365 dias por ano em qualquer canto do país. É o seu conceito de missão.
Se o Governo quisesse realmente privatizar seria fácil.
Segmente-se as linhas de transmissão das empresas controladas da Eletrobras em blocos regionais e as vendam em conjunto. Um excepcional fluxo de securitização de receitas e um modelo mais ilhado, adequado ao futuro do sistema de transmissão.
Em seguida as geradoras regionais: respeitando as bacias hidrográficas o que exigirá um maior cuidado para não se destruir o imenso patrimônio intangível construído por estas diferentes culturas empresariais de 60/70 anos de funcionamento.
As distribuidoras deveriam ser objeto de contratos de gestão com as privatizadas que se interessem, talvez as vizinhas. Uma eventual receita de venda que mitigue o prejuízo histórico é para depois. Fundamental é estancar o prejuízo.
Mas este não é um texto do como fazer. É apenas para dizer que não se fazem coisas certas com pessoas erradas para a missão.
Há como se consertar, como privatizar, atendendo ao maior interesse público. Mas não desse jeito proposto, que a meu juízo, só aumentará o problema.
Em 19 de Janeiro de 2018
José Luiz Alquéres