CCEE X Mercado Livre
Cabe lembrar que na estrutura institucional do setor compete – ou pelo menos deveria – à Aneel propor e estabelecer a regulamentação infra legal da comercialização
O Ministério de Minas e Energia abriu recentemente uma consulta pública (76/2019) em que apresenta minuta de portaria que proíbe que novos consumidores com demanda inferior a 1 MW sejam agentes da CCEE, ou seja, obriga aos que desejam adquirir livremente sua energia elétrica a buscarem o abrigo de um comercializador varejista para ingressarem no mercado livre.
Essa surpreendente iniciativa ficou marcada pela perplexidade com que foi recebida, haja vista sua escassa importância quando comparada com as esperadas alterações no modelo de comercialização de energia elétrica vigente, objeto do grupo de trabalho de modernização que o MME instituiu este ano, e que cuida de temas mais abrangentes e com muito mais relevância, como a separação da compra do lastro e energia e a mudança na metodologia de formação de preços.
Ademais, chama especial atenção o fato a proposta ter sido engendrada na CCEE, que antes a defendia alegando redução dos seus custos, mas pela fragilidade do argumento e por nunca ter apresentado valores, passou a justificar sua pretensão pelo viés da segurança às negociações, o que também não é compreensível, e, pasme-se, “para simplificar o acesso”.
Adicionalmente, cabe lembrar que na estrutura institucional do setor compete – ou pelo menos deveria – à Aneel propor e estabelecer a regulamentação infra legal da comercialização. É difícil aceitar que a CCEE, que gosta de se autoproclamar a “casa do mercado”, proponha regulamentação sem ouvir seus próprios agentes, que são verdadeiramente os donos da “casa”, e que, inclusive, pagam as contas. Parece que voltamos a 2012 e as lições da Portaria 455, imposta ao mercado sem qualquer consulta ou justificativa, mormente a usurpação de competências e afetação dos direitos econômicos dos agentes setoriais, não foram apreendidas, mesmo com as vicissitudes dela decorrentes, que demandaram tempo e dinheiro de muitos. Parabéns ao MME, que desta feita colocou o assunto para discussão prévia.
Mas porque o mercado se insurge contra essa iniciativa? A principal conclusão, e a mais evidente, é que limita o acesso ao mercado livre e inibe a liberdade dos consumidores que já podem fazer tal escolha. A maioria concorda que a CCEE é um mercado atacadista por excelência, cujo acesso deveria ser para aqueles que têm porte financeiro para tanto. No entanto, a determinação para que os consumidores que desejassem escolher seu próprio fornecedor de energia elétrica se tornassem obrigatoriamente agentes da CCEE foi estabelecida em Lei (10.848/04, art. 4º, §1º), também por proposta da CCEE, diz-se, quando o número de consumidores livres era insignificante e não se enxergava a possibilidade de crescimento do mercado livre.
Hoje, com mais de 6 mil consumidores operando livremente no mercado, impor essa restrição cria uma indesejável divisão entre consumidores beneficiados e outros tantos não tão afortunados, que seriam prejudicados pelo voluntarismo da CCEE, o que afetaria a competitividade das empresas, criando outra ineficiente reserva temporal de mercado, já não bastassem as existentes.
Consumidores ou conjunto de consumidores com carga entre 500 kW e 1.000 kW que hoje podem, mas ainda não fizeram a opção por adquirir sua energia elétrica de outro fornecedor, não poderão se beneficiar de preços muito mais atraentes, em escandaloso óbice à livre concorrência e à liberdade econômica. A possibilidade de tais consumidores, conhecidos como especiais, terem liberdade de escolha também foi assegurada por Lei (9.648/98, que incluiu o §5º no art. 26 da Lei 9.427/96), é preciso enfatizar, sendo difícil de acreditar que o operador do mercado procure solapar esse direito, há muito disponível, por medida regulamentar.
Usa-se o argumento que tais consumidores poderiam acessar o mercado livre por meio da contratação de um comercializador varejista. Entretanto, é preciso ponderar que essa figura – o varejista – ainda não foi na prática aceita pelo mercado. As razões para esse insucesso, pelo menos até o presente, são conhecidas, em especial a falta de previsão legal para o corte de inadimplentes, e seria de se esperar que a CCEE dirigisse seus esforços para eliminar as barreiras existentes que dificultam ao varejista se consolidar como uma opção viável para os consumidores.
A contratação de um comercializador varejista, diga-se, que em nada retira do consumidor os benefícios do mercado livre, deve ser uma opção desse, e não uma obrigação. Como em qualquer outra atividade comercial, a escolha do próprio fornecedor de um insumo essencial e a forma de fazê-la deve-se constituir numa faculdade do consumidor. Por óbvio, algo que não é atraente não precisa de restrição regulamentar. Um pequeno consumidor não será agente da CCEE se considerar que os riscos que corre e os custos de transação que terá, inclusive junto à Câmara, não se justificarem. A propósito, a própria Nota Técnica Nº 5/2019/CGCE/DGSE/SEE, que instrui a Consulta Pública, aponta como um contraponto o “possível aumento de custo de transação para os consumidores, em razão da transferência da assunção comercial do consumidor para o varejista”.
A quem beneficia a proposta da CCEE? A ninguém, exceto talvez a sua própria burocracia interna. Espera-se que o MME ouça claramente a voz da razão e a da maioria das contribuições à consulta pública (ver quadro abaixo) e não prossiga com essa infeliz iniciativa.