Despacho sem mérito, uma conta de R$ 4 bilhões
O setor elétrico, infelizmente, não para de dar más notícias. No apagar das luzes da atual gestão do Ministério das Minas e Energia (MME), estuda-se, por meio de duas consultas públicas, reativar diversas termelétricas cujo custo de geração pode atingir R$ 965,77 por Megawatt/hora (MWh). A despesa estimada desse despacho adicional para os consumidores é de estonteantes R$ 700 milhões/mês, podendo atingir R$ 4 bilhões até abril de 2019. A bandeira vermelha nas tarifas, inclusive para o setor produtivo, vai ser um triste legado para o próximo presidente.
O grande vilão das tarifas altas no setor elétrico é o modelo de formação de preços, uma obra de 20 anos dos “eletrocratas”, os técnicos do segmento que acreditam que as suas “bolas de cristal” são mais eficientes do que o mercado para decidir os valores dos megawatts. Apesar de contínuos esforços empreendidos ao longo dessas duas décadas para aprimorar as equações algébricas, os modelos continuam incapazes de refletir as condições de oferta e demanda e seus resultados por vezes são ignorados.
Uma consequência grave do sistema de preços baseado em modelo computacional é o aumento do custo para o consumidor. A mais evidente ineficiência de todas é o chamado despacho fora da ordem do mérito econômico que, por otimização de linguagem, será chamada aqui de “despacho sem mérito”.
Por meio de modelos econômicos, que consideram dados históricos e as previsões meteorológicas, os técnicos tentam supor se em vez de usar as águas dos reservatórios das hidrelétricas – uma poupança para evitar uma provável estiagem -, seria melhor ligar as usinas térmicas. Ou seja, se as termelétricas devem ser “despachadas”. Como dá para perceber, ainda que construído com base em dados estatísticos, trata-se de um exercício de adivinhação feito por poucos – os “eletrocratas” – que apostam qual tipo de operação redundaria no custo total menos elevado. Isso é o que se chama pomposamente de planejamento da operação do sistema.
Na visão técnica que prevalece até hoje, tudo é resolvido para o consumidor brasileiro por sofisticados algoritmos programados e processados por premissas e parâmetros humanos, baseados em critérios de aversão ao risco e dados estimados do futuro, que buscam assegurar um equilíbrio do sistema elétrico, com a premissa de que o custo de produzir um KWh novo, o chamado Custo Marginal de Expansão (CME), deva ser igual ao Custo Marginal de Operação (CMO) do sistema.
As bonitas siglas não podem esconder a precariedade das previsões. Há algumas semanas, por exemplo, depois de tudo simulado pelos sofisticados modelos e parâmetros, chegou-se à conclusão que o resultado – que sinalizava risco de desabastecimento próximo a zero – não tinha consistência com a realidade, pois poderia levar os reservatórios ao nível zero. Não se sabe se a “bola de cristal” havia falhado mais uma vez. Todavia, como os eletrocratas não confiam no próprio sistema, que indicava não haver necessidade de despacho térmico adicional, decidiu-se ligar as caras usinas térmicas, ou seja, o utilizar o “despacho sem mérito”, para não correr riscos. Afinal, se houvesse desabastecimento a culpa seria dos eletrocratas.
Após 20 anos de operação, é surpreendente constatar que as diversas condições para manter o nível de segurança no suprimento ainda não estejam previstas nesses modelos. Esse fato não é isolado e há tempos se espera e se promete que o modelo computacional irá funcionar adequadamente.
Ainda que construída com base em dados estatísticos, decisão é exercício de adivinhação feito por poucos
O registro é importante porque os efeitos do “despacho sem mérito” afetam diretamente as estratégias comerciais definidas pelos agentes e criam encargos milionários para os consumidores de energia. A geração por usinas de forma contrária aos modelos computacionais altera a alocação de custos entre os diversos agentes do mercado – geradores, comercializadores e consumidores – e introduz insegurança e riscos não previstos.
Tal insegurança fica clara pelo exemplo acima. Tão logo se decidiu pelo acionamento das térmicas, já na primeira semana operativa de setembro, constatou-se que o Custo Marginal de Operação sofreu uma redução de 38%. Isso significa uma profunda melhoria das condições de abastecimento e, portanto, em sentido oposto ao “despacho sem mérito” aprovado pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Tudo isso na semana imediatamente subsequente à decisão.
Após um mês de contínuo “despacho sem mérito”, os modelos matemáticos continuam a sinalizar a melhoria das conduções de abastecimento, os reservatórios estão acima da curva de referência estabelecida pelo CMSE e o Custo Marginal de Operação da última semana operativa foi reduzido novamente, agora para R$ 390,54 /MWh.
Apesar dessa sinalização dos modelos, como já dito acima, o MME estuda, por meio de duas consultas públicas, reativar diversas termelétricas. De uma forma bem simples, a recorrente utilização do “despacho sem mérito”, sempre criticada, mas frequentemente praticada, acaba definitivamente com a credibilidade e a previsibilidade dos modelos matemáticos de despacho e formação de preços.
É evidente que é necessário partir urgentemente para outro sistema, como o chamado despacho por oferta de preços, cuja proposta já foi amplamente discutida no Projeto RE-SEB no final da década de 90, detalhado pelo Comitê de Revitalização do Setor Elétrico em 2002, e recentemente ressuscitado pela Consulta Pública nº 33 do MME.
No novo contexto do setor elétrico, em que a participação ativa dos consumidores será progressivamente maior, somente um sistema de despacho por oferta dos agentes, em que os preços da energia sejam definidos pela oferta disponível de geração e pela demanda dos consumidores, permitirá que geradores e consumidores atuem de forma racional, otimizando os recursos energéticos do país. Assim, as decisões sobre preços passarão a ser coletivas e não mais dos eletrocratas.
É imperativo que a decisão sobre a alteração do modelo de formação de preços seja tomada e estabelecida a data de sua vigência, pois é inegável que tal mudança afetará a todos, havendo necessidade de um prazo de antecedência de, pelo menos dois anos, entre a decisão e a efetiva operacionalização do novo modelo. Mas a mudança é urgente e necessária para retomar o mérito das decisões do setor elétrico.