A hora e a vez do novo mercado de gás

A hora e a vez do novo mercado de gás

Alçada a prioridade pelo governo, reestruturação da cadeia do combustível quer suportar oferta do pré-sal e ancorar energia barata

O sentimento em torno da disposição que autoridades do governo, agentes do setor elétrico, entidades industriais e especialistas da área energética têm hoje para transformar o mercado brasileiro de gás natural talvez se resuma no velho clichê “agora vai!”. A reestruturação da cadeia produtiva atrelada ao insumo ganhou status de política prioritária não apenas na agenda de trabalho do Ministério de Minas e Energia, mas também na pauta da equipe econômica liderada pelo ministro da Economia Paulo Guedes. Em jogo, uma geração de riqueza estimada em R$ 120 bilhões por ano, valor que pode render aos estados e municípios aproximadamente R$ 40 bilhões com royalties e participações especiais.

O ponto central do novo e promissor momento esperado para o setor gasífero no Brasil passa, primordialmente, pelas projeções otimistas quanto ao acréscimo do produto a partir da produção nacional advinda das reservas nos campos do pré-sal. Além de incrementar substancialmente a oferta total no país, a reestruturação do mercado de gás é vista como medida crucial para a área econômica do governo conseguir implementar um choque positivo nos preços de energia para o consumidor final, tanto aos pequenos residenciais até aos grandes industriais. A intenção é fazer com que medidas objetivas sejam alinhavadas e divulgadas até o final do primeiro semestre.

“O gás está prestes a passar por uma verdadeira revolução, as condições estão dadas. O Brasil vai ter uma quantidade muito grande vinda do pré-sal, tanto para consumo interno quanto para reinjeção e exportação via liquefação. A oportunidade à frente é enorme”, avalia Paulo Pedrosa, presidente da Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres. Titular da Secretaria-Executiva do MME de 2016 a 2018, ele liderou as discussões com associações e demais entidades no programa Gás para Crescer, cujas ações previam a abertura do mercado para novos agentes produtores, transportadores e comercializadores basearam o Decreto 9.616/2018, lançado em dezembro passado.

A perspectiva de crescimento da oferta é expressiva. Hoje na casa de 110 milhões de metros cúbicos por dia (m³/dia), as projeções da Abrace apontam que esse patamar possa quase que dobrar quando a exploração do gás associado do pré-sal nas bacias de Campos e Santos atingir o seu patamar flat. A reconfiguração do mercado, segundo o executivo, significa uma oportunidade especialmente importante para a indústria nacional – hoje responsável por uma demanda contínua de aproximadamente 40 milhões de m³/dia. “O pré-sal pode ser, para nós brasileiros, o que o shale gas foi para os Estados Unidos, impulsionando um novo ciclo de desenvolvimento econômico do país”, diz. Entidades de classe, reguladores, empresas e poder público partiram para ações práticas.

Na avaliação do diretor de Energia da Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia, Marcelo Loureiro, há atualmente uma grande oportunidade de importação de gás natural liquefeito por meio de portos de grandes consumidores. “Temos conhecimento de diversos projetos de importação de GNL a partir de instalações portuárias existentes em grandes parques consumidores. Tais oportunidades, entretanto, não são levadas à diante pelos riscos atuais”, explica o executivo. A Abiape reúne no seu quadro de associados grandes companhias com investimentos em projetos de geração, entre as quais a ArcelorMittal, Ternium, Guerdau, Vale, Alcoa e Braskem. O parque de produção totaliza 23 GW de capacidade, dos quais 8,9 GW voltados para o consumo das próprias instalações.

Novo Mercado de Gás

Pelo lado do governo federal, a determinação neste momento é acelerar o quanto antes o processo de preparação para a abertura do mercado de gás natural no país. Para isso, os trabalhos usam as bases debatidas e consensadas durante o Gás para Crescer e incluem novos atores a fim de lastrear a implementação das medidas – tanto em nível legal, por meio da rediscussão no Congresso Nacional do Projeto de Lei 6.407/2013, que revisita a Lei do Gás de 2009, quanto em nível infralegal. A iniciativa governamental foi batizada pelo MME de “Novo Mercado de Gás”, e está amparada na criação, esta semana pelo Comitê Nacional de Política Energética, do Comitê de Promoção da Concorrência do Mercado de Gás Natural no Brasil.

O programa de trabalho do Comitê, de acordo com a resolução do CNPE, envolve formalmente uma coordenação por parte do MME e as participações conjuntas do Ministério da Economia; da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O objetivo será, principalmente, a formação de um “mercado de gás natural aberto, dinâmico e competitivo”, baseado em quatro pilares: promoção da livre concorrência, harmonização e aperfeiçoamento da regulação da atividade de distribuição, integração entre os setores elétrico e industrial e eliminação de barreiras tributárias.

O CNPE estipulou um prazo de 60 dias para a conclusão das atividades do Comitê, que terá de apresentar medidas de estímulo à concorrência e ações visando boas práticas regulatórias com os Estados – um dos entraves hoje. O grupo vai recomendar ainda diretrizes para o aperfeiçoamento de políticas de promoção à livre concorrência, semelhante ao que já ocorre na área de energia elétrica. A intenção é que o Novo Mercado de Gás permita novos investimentos em infraestrutura de escoamento, processamento e transporte, além do aumento da geração térmica a partir da redução do preço da energia, impactando no aquecimento de setores como celulose, fertilizantes, petroquímica e siderurgia.

“O aumento da oferta não virá por mágica, mas por mérito, especialmente quando falarmos de preços. O gás natural será necessário para promover o equilíbrio sistêmico na área de energia junto a fontes renováveis intermitentes, como solar e eólica, mas tudo isso necessariamente a preços competitivos, com méritos de mercado”, avalia Pedrosa. Além de presidir a Abrace, ele atualmente coordena o Fórum do Gás, grupo que reúne 15 entidades, entre as quais CNI, Firjan, associações de energia – Abrace, Abiape, Apine, Abraceel, Anace, Abraget e Cogen – e associações das indústrias das áreas química (Abiquim), de alumínio (Abal), cerâmica (Anfacer e Aspacer), vidro (Abividro) e soda-cloro (Abiclor).

Fórum do GásO foco dos trabalhos no governo nas discussões de reestruturação do mercado de gás se alinha à agenda deste ano dos agentes de energia. A pauta envolve medidas ancoradas em ações infralegais e institucionais, que podem ser tocadas independentemente da tramitação do Projeto de Lei no Congresso e que permeiam várias das premissas do “Novo Mercado de Gás”. Entre elas: desconcentração do mercado, independência e desverticalização do transporte, desenvolvimento da figura do consumidor livre, fomento ao mercado de curto prazo e maior transparência de preços e compartilhamento das chamadas infraestruturas essenciais (gasodutos, unidades de processamento e terminais de GNL).

“Identificamos que há caminhos para implementar os temas que passam não apenas pela via legal, mas também por ações mais diretas”, observa Bernardo Sicsu, consultor técnico da Abraceel e um dos subcoordenadores do Fórum do Gás. Muitas das ações institucionais transitam pela atuação do grupo junto a outros órgãos, como o Cade, no caso da busca pela desconcentração do mercado; e o IBP, no sentido de facilitar o acesso a gasodutos e terminais de GNL. Outros pontos, como o desenvolvimento do mercado livre e a transparência na formação e na definição dos preços, recaem fundamentalmente no estreitamento da relação dos agentes de mercado junto à ANP.

A abertura para a atividade de comercialização e a instituição da figura do consumidor livre de gás, desvinculado da obrigação de comprar o insumo das concessionárias de distribuição, são apontadas pelo diretor Técnico da Abraceel, Alexandre Lopes, como dois dos pontos mais polêmicos da agenda de trabalho envolvida na reestruturação desse mercado. “Apesar dessas figuras estarem previstas desde a primeira versão da Lei do Gás, de 2009, elas na prática nunca saíram do papel”, lembra. Apesar disso, ao longo dos últimos dez anos esse processo de abertura foi regulamentado em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santos e Pernambuco.

Uma das propostas visando o desenvolvimento do mercado livre de gás, que estaria na mesa de discussão do governo, prevê que apenas os estados com políticas concretas de incentivo à abertura das atividades de comercialização poderiam ter acesso aos recursos federais vinculados ao programa de socorro que o Ministério da Economia está montando para ajudar as unidades da federação. A intenção com a medida é desobrigar a compra do insumo apenas das distribuidoras locais, de acordo com informações publicadas pelo jornal “O Estado de S. Paulo” no último dia 9 de abril, criando um ambiente competitivo que impacte diretamente na redução do preço do combustível.

Na visão do presidente da Associação da Indústria de Cogeração de Energia, Newton Duarte, a viabilização do mercado aberto de gás no país, com estímulo a entrada de consumidores livres e a intermediação de agentes de comercialização, passa diretamente pela redução do custo do insumo aos clientes. Ele cita o reajuste de 37% no preço do gás concedido pela Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo, no final de fevereiro, a consumidores industriais paulistas. O percentual, considerado alto, foi alvo de críticas de diversas entidades, e acabou sendo reduzido pelo governador João Doria para 23%, pelo menos até o mês de maio.

“Em alguns segmentos da indústria, como fertilizantes e plástico, o preço do gás varia de 30% a 40% do valor do produto final. Com os preços praticados hoje, o peso é exorbitante. O fornecedor único fica confortável para pôr as tarifas de venda nos níveis que lhe convém. Isso é o resultado prático da falta de competição”, avalia Duarte, ressaltando que o preço do gás nacional hoje, em torno de US$ 9 por milhão de BTU, representa aproximadamente o triplo do preço do shale gas nos EUA. Ele estima que o potencial de produção elétrica por meio de cogeração a gás em indústrias como as de papel, celulose, alimentos e em centros comerciais chegue a 7,2 GW, com mais 17,8 GW de potencial térmico.

O papel da Petrobras

Qualquer que seja o caminho da reestruturação do mercado de gás natural no Brasil, ele vai passar necessariamente pela Petrobras. Figura central no mercado, dominante (até pouco tempo atrás exclusivo) em todos os elos da cadeia, a empresa participou ativamente das discussões ao longo dos dois anos do Gás para Crescer, e pretende levar em breve ao Comitê responsável pelo Novo Mercado de Gás suas posições. A estatal se mostra não apenas favorável à abertura do mercado como se diz preparada estrategicamente para atuar em um ambiente competitivo, mas faz ressalvas quanto ao andamento das mudanças legais e regulatórias que serão implementadas.

O principal ponto de preocupação manifestado pela gigante petrolífera, desde os trabalhos no Gás para Crescer, está na forma e no ritmo da transição para um modelo de mercado aberto. “A Petrobras entende que a migração no modelo de mercado na área de gás deve ocorrer de maneira coordenada, sob pena de piorar as condições existentes atualmente, ao invés de desenvolvê-las. É preciso evitar um cenário que leve a falta de confiança quanto ao suprimento interno do produto, hoje algo que não existe”, pontua o gerente-executivo de Gás Natural da estatal, Marcelo Cruz, que sublinha também a importância da garantia da segurança jurídica de contratos e acordos já firmados.

A lista de pleitos da Petrobras na reestruturação do setor passa por três pontos. O primeiro deles é a implementação do modelo de transporte na modalidade de entrada e saída, no qual produtores e consumidores podem usar quaisquer pontos da malha para injetar e retirar o gás, diferentemente do modelo “ponto a ponto” atualmente adotado. A empresa também defende uma alteração nas regras tributárias, permitindo que a taxação sobre operações no novo mercado de gás permita que o insumo seja tratado como indústria de rede. Outro ponto prioritário é a criação de um órgão independente da rede de transporte, desempenhando os papeis tanto de operador quanto de gestor de mercado.

“É fundamental que o governo trabalhe pela criação desse novo ator independente, funcionando como um grande organizador das operações comerciais nessa nova estrutura do mercado nacional de gás, semelhante ao que desempenha a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica no setor elétrico. Essa nova empresa ou entidade garantiria a governança adequada às transações comerciais”, defende Cruz. Hoje a Petrobras está presente em todos as fases da cadeia do gás, sendo o maior produtor do país – 107 milhões de m³/dia em fevereiro segundo dados da ANP, ou 98% do total –, o maior carregador, o único agente de importação e de comercialização, o controlador da distribuição e o maior consumidor.

Em paralelo à reorganização do mercado de gás, o programa de desinvestimentos de ativos em curso desde 2016 é fator crucial para a redução da presença da Petrobras no mercado nacional, especialmente na atividade de transporte. Após as vendas de participações nas subsidiárias NTS e TAG, respectivamente para a Brookfield, em 2017, e para a Engie e um fundo canadense, em abril deste ano, a Petrobras passou a atuar em apenas 20% de toda a malha de gasodutos do país. A empresa continua a deter o controle, com 51% de participação, apenas na TBG, operadora do gasoduto Brasil-Bolívia, e mantém ainda fatias reduzidas de 10% do capital tanto na NTS quanto na TAG.

Certeza em relação à Petrobras é a de que a empresa se manterá como o principal consumidor do gás natural disponibilizado no mercado brasileiro. Atualmente a companhia demanda cerca de 40 milhões de m³/dia, ou algo em torno de 40% de todo o gás produzido no Brasil, importado da Bolívia e da Argentina e liquefeito nos terminais de GNL. O consumo vem das unidades industriais e refinarias, que demandam em média de 12 milhões de m³/dia, e principalmente do seu parque de 20 usinas termelétricas, com capacidade instalada de 6,1 GW e uma demanda que pode chegar a 30 milhões de m³/dia nos períodos de despacho full para o Sistema Interligado Nacional.

Para o presidente da Associação Brasileira de Geradoras Termelétricas, Xisto Vieira, o novo ambiente concorrencial para o gás, seja qual for a sua configuração e estrutura, não deverá reduzir o peso da Petrobras como figura central do mercado, tanto como ofertante quanto como grande consumidor. “Ela será mais um na disputa por mercado, mas claro que com toda a expertise adquirida nos anos em que atuou sozinha na montagem de praticamente toda a infraestrutura que temos hoje à disposição”, observa ele, projetando nos próximos anos um crescimento da demanda térmica e não térmica. “Viabilizar o gás do pré-sal tem de ser a maior prioridade. Não existe mercado sem oferta. E o preço vai cair”, diz.

Distribuidoras estaduais

Na ponta da distribuição, a principal expectativa das concessionárias estaduais quanto aos efeitos positivos da reorganização do mercado também passa pela redução do preço do gás cobrado aos consumidores finais. O segmento mantém posição de que a definição do custo da molécula para o mercado consumidor – custo esse que, no caso do setor industrial, chega a responder em média por 52% do valor da tarifa final – dependerá do apetite dos ofertantes, vis a vis o preço internacional. Neste caso, os próprios agentes comercializadores irão avaliar, dentro desse panorama de competição aberta, se é mais atrativo exportar o gás natural ao invés de vendê-lo no mercado local.

“Acreditamos no mercado atual e futuro para a alocação do gás existente e do que será produzido, a custos bem mais competitivos para a indústria nacional”, avalia Augusto Salomon, presidente da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado. Ele argumenta que as concessionárias de distribuição já atuam na prática como comercializadoras, sem que sejam remuneradas pela atividade. Isto porque assumem uma contratação média de 50 milhões de m³/dia com riscos de inadimplência, take or pay e ship or pay. “Nossa remuneração é lastreada numa margem de 15% da tarifa, que paga investimentos, operação e manutenção dos ativos, quadro de funcionários e tributos”, diz.

Além do desenvolvimento de novas infraestruturas de transporte e processamento, e do acesso às já existentes, a associação endossa a proposta da Petrobras de criação de um operador técnico e independente para o sistema de gás, regulado pela ANP. Esse ente responderia por manter o equilíbrio no fornecimento entre a entrada e a saída, gerir o atendimento dos contratos e dar segurança no suprimento. Outro ponto levantado pela entidade é a necessidade de implantação de agências reguladoras técnicas nos estados que ainda não possuem essas autarquias. “Será fundamental para a inclusão da figura do consumidor livre, dando a devida competição ao preço da molécula”, afirma Salomon.

Fica claro que se, em um primeiro momento, o foco das operações por parte das empresas de E&P estava situado apenas no petróleo de boa qualidade, agora o gás natural associado à prospecção do óleo também é visto como ativo de grande valor, tanto por parte do Estado e quanto da iniciativa privada. Nesse sentido, não é difícil entender a urgência que as áreas de energia e de economia do Planalto conferem à reagrupação da estrutura do mercado interno e da atuação dos agentes, em todas as etapas da indústria do gás. A expectativa é que o conjunto de regras que vão suportar o choque na oferta do combustível tão aguardado para os próximos anos saia do papel e vire, de fato, realidade.