O impacto do Coronavírus nos contratos de compra e venda de energia elétrica
Quando muitos celebravam a festa de réveillon, em 31 de dezembro de 2019, confirmava-se os primeiros casos de coronavirus na cidade de Wuhan, localizada na China. As primeiras notificações eram de que se tratava de uma misteriosa pneumonia, aliada à insuficiência renal, dificuldades respiratórias e febre. À princípio, foram infectadas pessoas que tiveram contato com o mercado de frutos do mar, na cidade de Wuhan, o que gerou o seu fechamento para limpeza e desinfecção.
Logo em seguida, o vírus se alastrou pelas demais cidades da China, e com a intensa globalização do Século XXI, atingiu outros países e até mesmo outros continentes em curto espaço de tempo. Apesar da tensão gerada ainda no início do contágio, não era possível mensurar o nível de gravidade sanitária e econômica que o vírus seria capaz de ocasionar. Fato é que, em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil confirmou o primeiro caso no país. Na sequência, os números foram crescendo e, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou pandemia de Coronavírus (COVID-19).
Após a declaração feita pela OMS e com o crescente número de infectados no Brasil, vários Estados impuseram restrições ao funcionamento de escolas, shoppings centers, comércio e à circulação de pessoas de modo geral. Com isso, a crise que era sanitária tornou-se também econômica.
Neste cenário, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee) levantou a questão sobre a possibilidade da suspensão de cobranças na conta de luz, o que já foi proposto em alguns Estados, mas que, por segurança dos elos envolvidos, só deve ser implementado após debate com todos os integrantes da cadeia energética, em especial do Comitê de Crise instaurado pelo Ministério de Minas e Energia (MME).
Todos esses integrantes da cadeia energética passarão a sofrer os impactos da crise, tendo em vista a drástica redução do consumo de energia, que, consequentemente, poderá ensejar a inviabilidade de cumprimento dos contratos de compra e venda de energia. Neste sentido, é possível fazer uma analogia com a redução do consumo que aconteceu na Itália, que também adotou o isolamento em razão do coronavirus. No território norte-italiano, o consumo reduziu em 25%, ao passo que no território total do país a redução foi de 15%, conforme informou o presidente da elétrica A2A. Neste último domingo (22), o Brasil verificou uma redução de 9% na demanda, sendo a tendência de que existam mais reduções.
Considerando que o isolamento e cumprimento de quarentenas está crescente no Brasil, surgiu a discussão sobre a possibilidade de se aplicar a cláusula de caso fortuito aos contratos de compra e venda de energia elétrica, como forma de afastar a responsabilidade do devedor. Caso fortuito decorre de eventos da natureza, como catástrofe, ciclone, tempestade anormal ou até pandemia decretadas pela autoridade competente. Nesse sentido, o caso fortuito é considerado hipótese de fato imprevisível no qual a consequência inviabiliza ou prejudica demasiadamente o adimplemento da obrigação, nos termos do art. 393 do Código Civil .
As chamadas interferências imprevistas constituem-se em elementos materiais que surgem durante a execução do contrato, dificultando extremamente sua execução e tornando-a insuportavelmente onerosa. Sua ocorrência autoriza a revisão contratual também no âmbito deito Administrativo, conforme prevê o artigo 65, inciso II, alínea “d”, da Lei nº 8.666/93 .
A isenção de responsabilidade pela entrega de obras, e no caso do setor elétrico, mais especificamente, no atraso na entrada em operação comercial das usinas de geração ou instalações de transmissão, decorrente de fatos caracterizados como excludentes de responsabilidade (força maior), encontra-se disciplinada no art. 57, § 1º, inciso II, da Lei nº 8.666/93 .
Quanto aos contratos regulados do setor elétrico (CCEARs), a importação de energia elétrica ou à base de gás natural poderá também ensejar o reconhecimento de força maior, conforme o art. 2º, §§ 16 e 17, da Lei nº 10.848/2004 .
No âmbito regulatório, a inexecução de contrato encontra-se também amparada por excludente de responsabilidade, conforme previsão no art. 4º, inciso II, da Resolução Normativa ANEEL nº 453/2011 .
Contratualmente, encontra-se expresso em cláusulas dos contratos de concessão de uso de bem público para geração de energia elétrica e dos contratos de comercialização de energia elétrica no ambiente regulado – CCEARs.
No entanto, trata-se de uma teoria geral que, independente de dispositivo expresso, encontra previsão genérica no art. 393, do Código Civil, aplicável a toda e qualquer tipo de atividade empresarial que, por motivos alheios à sua vontade, ocasionado por força maior, ficou impossibilitada de cumprir obrigação legal, contratual ou regulatória. Sendo assim, independente de cláusula contratual, entende-se que os contratos celebrados no mercado livre (CCEAL) também se encontram amparados por cláusula de excludente de responsabilidade por força maior.
Para se insurgir com tal alegação, a parte que se sentir prejudicada deve, necessariamente, demonstrar o nexo de causalidade entre a crise gerada pelo Coronavírus com a impossibilidade de cumprimento da obrigação, apresentando conteúdo probatório robusto e plausível. Cada caso merece uma análise individual, tendo em vista as particularidades de cada obrigação não cumprida.
Yuri Schmitke Almeida Belchior Tisi é sócio da Girardi & Advogados Associados desde 2012 e Presidente da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos (ABREN). Membro do Working Group on Energy Recovery da International. Gabriel Oliveira Cotta é Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, aprovado no exame de ordem da OAB e estagiário da Girardi & Advogados Associados.