O lastro e a energia para modernizar o setor elétrico
Claudio J. D. Sales e Richard L. Hochstetler
A forma que planejamos, operamos e comercializamos energia elétrica passará por profundas mudanças nos próximos anos. A crescente participação de fontes de energia não controláveis, a ampliação do mercado livre e a necessidade de aprimorar a gestão de risco no setor tornam necessárias adequações na regulação setorial.
A linha mestra das adequações requeridas foi desenhada em Consulta Pública (CP 33/2017) realizada pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e agora é discutida em projetos de lei no Senado (PLS 232/2016) e na Câmara dos Deputados (PL 1.917/2015).
Um dos temas centrais neste conjunto de reformas passou a ser conhecido como a “separação entre lastro e energia”, que surge da constatação de que os empreendimentos de energia não são homogêneos.
Atualmente, a contratação de novos empreendimentos é definida em função do custo médio da produção de energia ao longo da vida útil do empreendimento, o que na literatura especializada é descrita como Levelized Cost Of Energy (LCOE).
Mas o fato é que nem todo megawatt-hora (unidade de medida de energia elétrica) é igual ao outro: a energia produzida na madrugada não tem o mesmo valor da energia produzida na hora de pico da demanda, da mesma forma que a energia produzida no meio da selva amazônica não tem o mesmo valor da produzida perto de grandes cidades.
Cada fonte e tecnologia apresenta características diferentes, sendo que algumas se coadunam melhor com as necessidades do sistema, seja em função do comportamento horossazonal da carga, seja pela sua complementariedade ao parque gerador já instalado.
Os conjuntos de usinas mais adequadas para atender às necessidades do sistema podem vir a apresentar um LCOE mais elevado do que outros empreendimentos de geração, mas são preferíveis porque proporcionam maior segurança de suprimento ou reduzem custos sistêmicos.
O governo busca corrigir a matriz elétrica direcionando os Leilões de Energia Nova para a contratação das fontes com as características consideradas essenciais para manter a segurança do suprimento, que pode ser considerada um bem público.
No entanto, embora todos desfrutem da maior segurança proporcionada pelas usinas viabilizadas nestes leilões, o seu custo acaba sendo arcado predominantemente pelos Consumidores Regulados (isto é, aqueles que são atendidos pelas distribuidoras), enquanto os Consumidores Livres tendem a adquirir energia das usinas mais baratas.
Se entendemos o lastro como a garantia de suprimento, o principal argumento a favor da separação entre o lastro e a energia é a viabilização de um rateio equânime dos custos associados à provisão de lastro entre todos os consumidores. O lastro seria contratado em leilões pelo governo, enquanto os próprios agentes contratariam a energia de forma concorrencial.
Até aí há concordância conceitual. Mas é a partir deste ponto que começam a surgir as divergências. Embora a separação seja interessante da perspectiva do lado da demanda, do lado da oferta a conciliação é difícil, pois cada usina apresenta uma determinada combinação de lastro e energia.
Afinal, a decisão de investir na instalação de uma nova usina dependerá da expectativa de receitas a serem obtidas com a venda de lastro e de energia. Ao comercializar estes dois componentes separadamente, a decisão de investimento torna-se mais complicada, pois a viabilidade do empreendimento passa a depender de várias transações independentes.
Além disso, o lastro não é unidimensional. No Grupo de Trabalho do MME discutem-se pelo menos três dimensões de lastro: produção, potência e flexibilidade. A forma pela qual se define o lastro pode beneficiar algumas fontes e tecnologias e prejudicar outras, o que torna difícil definir o lastro de forma tecnologicamente neutra.
Por exemplo, a geração eólica pode prover lastro de potência? Por ser uma fonte não controlável poder-se-ia argumentar que não, mas o fato é que se sabe quanto o parque eólico tende a gerar em cada época do ano e, ao aproximar-se do momento do despacho, pode-se prever o montante com razoável acurácia.
Por fim, um mesmo atributo oferecido por duas fontes ou tecnologias pode envolver riscos muito diferentes. A geração termelétrica a gás natural é firme, mas seu custo está sujeito às variações do custo do combustível; já a termelétrica a bagaço de cana tem custos estáveis, mas sua produção depende da colheita de cana-de-açúcar.
Alternativamente, pode-se abordar a questão segmentando a contratação de energia. O que importa é a capacidade do sistema para atender à carga em cada instante e localidade. Em vez de definir os atributos requeridos da geração e atribuir valores a cada um deles, poder-se-ia segmentar a energia em vários produtos delimitados por estação do ano, período do dia e região. Os preços de equilíbrio de cada produto no mercado de longo prazo ensejariam a instalação da matriz elétrica mais adequada.
Muitas decisões difíceis terão que ser tomadas nos próximos anos porque como cada alternativa apresenta seus prós e contras, é importante que as escolhas sejam bem fundamentadas com plena compreensão das alternativas e das suas respectivas implicações.
O livro Reflexões sobre uma Arquitetura de Mercado para o Setor Elétrico Brasileiro, resultante de um projeto de pesquisa e desenvolvimento regulado pela Aneel, aborda estas questões relacionadas à estruturação do mercado de energia, proporcionando um arcabouço teórico útil para a análise dos dilemas envolvidos. Os pesquisadores envolvidos propõem e contrapõem duas alternativas para abordar as questões acima mencionadas.
A primeira abordagem, denominada de “Modelo Indutor”, é comparável à proposta de separação de lastro e de energia, em que o lastro é contratado pelo governo por meio de “Opções de Confiabilidade” e a energia é contratada livremente pelos agentes. Já a segunda abordagem, o “Modelo Integrador”, explora a alternativa da contratação de energia de forma segmentada entre vários produtos.
Aos poucos estamos construindo consensos sobre as mudanças necessárias. Os desafios são grandes, mas dispomos de plena capacidade para superá-los.
Claudio J. D. Sales e Richard L. Hochstetler são do Instituto Acende Brasil.