O quarto escuro e o poste sem luz
No quarto escuro, os passos são bem curtos, mas não devemos ficar imobilizados, na parede. O setor elétrico brasileiro convive com certa escuridão desde 2013, quando decisões irracionais lhe retirou o rumo. Tem sido salvo pelo longo ciclo de recessão, que reduziu de forma brutal o consumo de energia. Trôpego, com seus passos desarticulados, vibra com leilões de expansão, só que o consumo de energia é de pouco mais de 40% da capacidade instalada de geração, um retrato da ineficiência. Sobra capacidade instalada, portanto energia contratada, que não pode ser transformada em MWh. Com isso, além de trôpego, o andar parece desconexo, com risco de tropeçar nas suas longas pernas. Paga-se muito caro por isto. Nossa tarifa é das mais caras do mundo, e eis uma das explicações.
Ainda que o funcionamento do sistema tenha que atender a determinadas leis da Física, como a de Kirchhoff e a de Thevenin, os cálculos econômicos desprezam esta característica. Dois exemplos, os mais bizarros: a hora da demanda máxima, ou hora da ponta, tem acontecido, há um bom tempo, entre 15h e 16h, mas as tarifas são calculadas como se tal evento ocorresse entre 18h e 21h. Também se paga por essa idiossincrasia, e não é pouco.
O segundo exemplo é bem nosso. Os custos da energia ofertada variam a cada dia, e até de hora em hora, a depender da combinação das diferentes fontes de geração e do comportamento da carga, mas o preço praticado é semanal, como se toda energia estivesse sendo produzida por única fonte. São de assustar, mas não de surpreender, as resistências para que esses equívocos sejam corrigidos.
Além de água, sol, vento, biomassa e até gás natural, a natureza foi pródiga com o setor elétrico. As grandes hidrelétricas (UHE) estão distantes da carga, mas a tecnologia e os custos de transmissão evoluíram favoravelmente. Um conforto. As pequenas centrais hidrelétricas (PCH) são conectadas nas redes das distribuidoras, o que reduz as perdas elétricas. Uma dádiva. As eólicas estão praticamente nas cidades, como a solar e a biomassa. Um achado. E as termelétricas estão próximas da carga e das unidades de gás natural. Um grande valor.
Por que, então, a energia é tão cara e as crises tão frequentes e duradouras? Alguns dizem que é consequência de falhas de planejamento. Mas não. Planejamos demais. Nos leilões, o Ministério de Minas e Energia (MME) chega a especificar quanto da demanda deve ser atendida por eólicas, solar ou hidrelétrica, como se fôssemos os antigos adivinhadores. Também não temos quaisquer restrições técnicas, pois são mitigáveis os custos de acesso ao que há de mais moderno em termos tecnológicos.
O problema é que, por alguma razão, não temos conseguido concatenar, de forma racional, o que a natureza nos deu. Não organizamos para somar ou multiplicar os pontos positivos, mas para subtraí-los ou dividi-los. As fontes de ineficiência estão na estrutura de governança, que estimula o intervencionismo e o improviso, que desorganizam e deixam o setor vulnerável ao voluntarismo estatal. As fronteiras da regulação são erroneamente flexíveis. Quem regula? A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) ou o MME? Por conta da segurança do sistema, que é argumento para tudo, o operador do sistema cede espaço para o MME, abrindo caminho para o afastamento dos custos ótimos, como aconteceu, de forma exagerada, entre 2007 e 2016.
Decisões técnicas e complexas seguem para o escrutínio político, que é, para o caso, um poste sem luz
Infelizmente, ainda estamos longe de uma solução razoável para o setor elétrico, embora alguns pequenos passos estejam sendo dados, mas sem foco. A lógica ainda é a da busca de soluções locais, que transformam o setor elétrico em um espantalho. O quarto fica mais escuro. Decisões técnicas e complexas seguem para o escrutínio político, que é, para o caso, um poste sem luz, aumentando a entropia, a desordem do sistema físico.
Prioriza-se as partes, não somáveis, e subjuga-se o todo. Cada um quer passar adiante sua conta do risco hidrológico, quer seu leilãozinho, sua reserva de mercado e outras benesses. No meio da celeuma estão as distribuidoras, que tomam riscos não previstos em seus contratos.
Li, por esses dias, que o setor elétrico imitará as bancadas da bala e evangélica. Criaremos, com as melhores das intenções, as bancadas da nuclear, da eólica, das PCH, das UHE, da energia solar, da biomassa e do gás natural, poderosíssima. Na interseção desses conjuntos estão os subsídios, irmãos da insensatez e da ignorância econômica, que subtraem e dividem.
Em razão de tudo isso, perdemos o bonde da história ou chegaremos nele muito atrasados. O “vagão” do smart grid, que começou na década de 70 e já anda para a 3ª geração, ainda não chegou por aqui. Por que os investimentos não são feitos, se são da mesma ordem de grandeza dos custos com o furto de energia?
A geração distribuída (GD), elemento transformador do segmento de distribuição, que tomou conta do setor elétrico mundial nos últimos 10 anos, é aqui movida por subsídios excessivos e perversos, o que implica resistências e desnecessários conflitos regulatórios, sem falar na perda de tempo. Cresce em velocidade espantosa a quantidade de consumidores que passam a gerar a energia que utilizarão, mas pouca tem sido a preocupação com a integração econômica desses recursos distribuídos, que é um papel das distribuidoras. (É assim na Alemanha e nos Estados Unidos, onde cerca de 60% da GD pertencem aos consumidores).
São quase intransponíveis as barreiras para o “desmame” de alguns subsídios bilionários, como dos consumidores rurais e da irrigação, para os quais as regras de entrada são desprezadas e as de saída, desrespeitadas. São inúmeras e visíveis as irregularidades apontadas pelos órgãos de controle, mas é impensável que se tenha uma data para iniciar o “desmame”.
É espetacular o potencial da oferta de gás natural proveniente do pré-sal, mas nada indica que represente um dia a redução dos custos de geração, muito pelo contrário. O monopólio na cadeia de fornecimento do gás impede que o setor elétrico se beneficie de tamanho esforço de produção.
Parece certo o ministro da Economia, Paulo Guedes, quando argumenta que a competição no segmento do gás natural é determinante para a redução relevante do preço da energia elétrica. Mas penso que é muito mais: a competição é a fresta de luz a iluminar o quarto escuro, a coordenar os pequenos passos e retirar o setor elétrico da parede. Mas é preciso criar as condições para a façanha.