Receio de escassez eleva preços
Perspectiva de reservatórios mais vazios. abaixo de 50% da capacidade, preocupa empresas com uso intensivo em suas operações.
O cenário energético brasileiro não é dos mais promissores neste ano para os grandes consumidores de energia do país, antigamente chamados de eletrointensivos e hoje de energointensivos. Os maiores deles são indústrias como as metalúrgicas Alcoa, Alcan, CBA, siderúrgicas e mineradoras como a Vale, CSN e Arcelor ou as químicas como a Unipar Carbocloro e Braskem. No fim de março, a cotação do megawatt-hora (MWh) no spot do mercado livre chegou
à casa dos R$ 400, ou seja, um spread na casa dos R$ 100 por MWh em relação ao mercado regulado, revelando a falta de confiança na estabilidade da oferta de energia. O temor dos grandes consumidores deve-se, sobretudo, ao instável regime hidrológico nacional. No fim do período de chuvas – praticamente coincidente com o verão – os reservatórios estavam, em média, na faixa de 40% a 42% da capacidade de armazenamento, porque a região Nordeste ficou por meses em situação crítica, sem chuvas, obrigando o sistema elétrico interligado alocar geração hídrica de outras regiões. O Nordeste representa 18% da geração hídrica do país e o Sudeste e o Centro-Oeste, que também não conseguiram recompor seus reservatórios acima dos 50% da capacidade, respondem por 70% da geração. Até o início da nova estação das chuvas, a partir de novembro, não há como normalizar a geração de hidroeletricidade, que responde por pouco mais de dois terços da matriz energética do país. Apesar dos grandes consumidores de energia serem também autoprodutores, em sua esmagadora maioria, e mesmo considerando a sua diversificação de fontes como gás natural, eólica, solar e biomassa, suas unidades produtivas, geralmente espalhadas pelo território nacional, não são todas atendidas por energia própria. E eles representam praticamente a metade da demanda de energia no mercado livre do país. “Obviamente, não chegamos a correr risco de racionamento este ano, porque o ritmo da economia, com a crise, não está pressionando tanto. Mas o regime hidrológico, há quatro anos, tem obrigado o acionamento de usinas térmicas, de custos mais elevados que as hídricas”, lembra Edvaldo Santana, presidente-executivo da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace). Outro ponto de estresse, sem precedentes, para os maiores demandantes de energia é a questão de que há uma conta, que soma R$ 62 bilhões, na qual mais da metade é de juros, para a compensação das transmissoras de energia do país, que está sendo cobrada deles. Como não se consideram responsáveis por ela, foram à Justiça para não pagá-la. Há muitas liminares obtidas em juízo para evitar um vultoso desembolso, pelo menos enquanto não for julgado o mérito das responsabilidades pelo déficit atual das transmissoras de energia. O julgamento do mérito pode levar de um a dois anos na Justiça. ”A judicialização das relações não é boa para ninguém. Aqui na Abrace, meu tempo tem sido mais dedicado a advogados do que ao desenvolvimento do setor”, justifica Santana. Na verdade, o Estado opera no setor como um ator de produção e transmissão de energia pelo sistema Eletrobras. O embate tomou vulto depois que o governo anterior decidiu segurar os preços da energia para evitar pressão sobre a inflação, especialmente após a edição da Medida Provisória 576. Agora o governo Temer, do PMDB, que sempre teve no setor de energia uma das suas áreas de maior influência, ainda não conseguiu desatar os nós pendentes do governo Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, o estresse se espraia no mercado livre, também cercado por liminares obtidas na Justiça, porque alguns consumidores e geradores de energia se negam a pagar por cotações de energia baseadas nos despachos de termelétricas, mais caras, em parte por considerarem que havia disponibilidade de energia mais barata no sistema no período. Assim, a Câmara de Compensação de Energia Elétrica (CCEE), que regula o mercado livre de energia, sofre com inadimplência em uma fatia de 60% a 70% de energia comercializada no setor. Isso pode comprometer a compensação daqueles que são ofertantes no setor de energia livre. “Não há por parte dos grandes consumidores a menor disposição de absorver esses custos. Enquanto estiverem sob liminares, não vão liquidar sua posição no mercado livre”, afirma Josiani Napolitano, ex-AES Eletropaulo, que assumiu no início de março a diretoria de regulação da Matrix Energia. Segundo ela, vai ser necessária uma rodada de repactuação para evitar o comprometimento do mercado livre. Enquanto as questões jurídicas se arrastam, o início de novos projetos de investimento em mais geração, o que asseguraria a estabilização do sistema elétrico, fica comprometido ante o grau de mitigação de risco diante das escassas fontes de financiamento de longo prazo no país. Além do mais, persiste uma certa preocupação de grandes financiadores internacionais em relação a empreendimentos brasileiros. Especialmente ante o cenário político atual, sob os efeitos da Operação Lava-Jato, e a proximidade do início da campanha eleitoral para 2018. O grupo Votorantim, que conta com 32 usinas, entre próprias e consorciadas, concluiu no início deste ano investimento de R$1,1 bilhão em um parque eólico no Piauí com capacidade de 200 MW, que deve entrar em operação integralmente até o fim de 2017.
Fábio Zanfelice, presidente da Votorantim Energia, empresa que opera os ativos de energia do grupo e assegura entre 80% e 85% da demanda das suas empresas irmãs, atende outros 220 clientes com oferta de 1.886 MWh no mercado livre. Essa marca coloca a Votorantim, um dos maiores consumidores de energia do país, em terceiro lugar na oferta de energia no mercado livre, atrás da Tractebel e do BTG, respectivamente primeiro e segundo lugares. “Nós vemos com preocupação essa judicialização e o cenário para 2018. O setor elétrico sempre operou com segurança, inclusive com o Fundo de Reserva Global de Reversão (RGR), cobrado na conta de energia. Justamente para evitar desencaixes e eventuais compensações (que não onerassem o Tesouro), e agora, sem esses recursos, a saída é o diálogo com o governo”, comenta Zanfelice, lembrando que a liberação do mercado está em discussão, mas antes é preciso um pouco de “sabedoria” para superar o risco hídrico. Outro grande consumidor, especialmente do mercado livre, a Ambev quer garantir que 100% da eletricidade que compra venha de fontes renováveis até 2025. A sua matriz belga, AB InBev, definiu que vai adicionar cerca de 1 GW (gigawatt) de capacidade de energia renovável, em países em desenvolvimento como o Brasil, Argentina, Colômbia e África do Sul. A medida é fundamental para o alcance das metas climáticas acordadas na Conferência do Clima de Paris (COP 21). A AB InBev tem, para todos os países onde atua, oito metas ambientais que devem ser cumpridas até o fim de 2017, sendo quatro delas relacionadas à redução de gases de efeito estufa e ao consumo de energia. E dois anos antes desse prazo final, a operação brasileira reduziu em 10% a emissão de gases de efeito estufa, e 70% dos refrigeradores adquiridos anualmente são modelos mais ecológicos. “Trabalhamos para ter uma operação cada vez mais sustentável, reduzindo ao máximo o impacto no meio ambiente”, diz Rodrigo Figueiredo, vice-presidente de suprimentos da Ambev. O grupo AB InBev espera garantir até 85% de eletricidade, incluindo o uso próprio de tecnologias locais, como painéis solares. A meta é a redução da pegada de carbono operacional da empresa em cerca de 30%.
Assim como a Ambev, uma miríade de consumidores busca energia de fontes alternativas, conhecidas no mercado como energia incentivada – seu custo para o consumidor é cerca de 50% inferior ao preço do mercado livre, e por isso há mais pressão de demanda sobre a oferta nesse nicho. Os médios e pequenos consumidores buscam esse tipo mais vantajoso de contrato. “O mercado de energia está firme, a questão é a instabilidade das regras, o que dificulta o pay-back, e os juros não facilitam a expansão dos investimentos”, diz Andrew Frank Storfer, acionista e CEO da América Energia, que está investindo R$1, 1 bilhão em cinco pequenas usinas hidrelétricas (PCHs) em Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás e Tocantins. Grandes consumidores de energia são seus principais clientes dos 500 contratos que atende por mês. “Vendo metade da energia no mercado livre e metade no mercado cativo (contratos
de longo prazo) e nenhum grande consumidor fica subcontratado ou exposto à variação de preços, que comprometa seus custos”, lembra Storfer. Contratos dos grandes consumidores no mercado livre geralmente têm prazo acima de cinco anos. O fato é que os grandes consumidores de energia passaram pela crise, aproveitando a sobra de energia para rever seus ativos energéticos, trocando operações antigas ou mais onerosas por novas posições em consórcios e contratação de longo prazo no mercado livre, que até o último trimestre de 2016 tinha preços na casa de R$ 140 a R$ 160 por MWh. Mas essa fase de preços acessíveis acabou em fevereiro de 2017, quando os relatórios sobre a eficácia do período de chuvas para o armazenamento de energia nos reservatórios mostrou-se bem abaixo das expectativas para o período. E os preços começaram a subir. A Vale, um dos maiores consumidores intensivos de energia do país, vem rearranjando seus ativos de energia e participações em usinas hidrelétricas, que somam 1,2 GW. “Investimos em projetos de geração de energia para dar suporte às nossas operações e reduzir nossa exposição à volatilidade dos preços de energia e incertezas regulatórias. Atualmente, geramos 51 % de nossa necessidade mundial de energia elétrica em nossas próprias usinas”, justifica o relatório aos acionistas da companhia. Desde 2015, a empresa está reestruturando suas posições na geração de energia, quando alienou 49% de sua participação de 9% na Norte Energia, controladora de Belo Monte, à Cemig por R$ 310 milhões, e criou duas joint ventures: Aliança Geração de Energia, com fatia de 55% em sociedade com a Cemig GT e Aliança Norte Energia Participações, com participação de 51 % ao lado da Cemig na Norte Energia. A Vale também controla a Biopalma da Amazônia, de óleo de palma, que produzirá biodiesel para sua frota de caminhões de mineração, maquinário pesado e locomotivas nas operações do Sistema Norte.