Situação dos agentes, consumidores e reguladores perante a pandemia
Manoel Negrisoli*
É fato que vivemos um período de atipicidade em função da quarentena imposta a todos os brasileiros. Esta situação provoca uma série de consequências para todos na cadeia de energia elétrica. Segundo relatório da CCEE, Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, o consumo médio de 01 a 17 de março foi de 20.787 MWm e de 18 de março a 03 de abril foi de 18.644 MWm correspondendo a uma queda de 10,3%. Os setores mais afetados no consumo de energia, neste período, foram:
• Veículos -45%;
• Têxtis -34%;
• Serviços -32%;
• Manufaturados -21%.
Comparando o consumo de março de 2020 com o mesmo mês de 2019 a redução foi de 1,5%. Há de se considerar neste percentual a sazonalidade do carnaval entre 2020 e 2019. Em 2019 o carnaval foi em março e em 2020 em fevereiro, portanto, março de 2020 teve 4,5 dias úteis a mais. Expurgando este efeito carnaval a média diária de consumo sofreu redução de 19,4% em relação a 2019. Isto posto vamos considerar os efeitos sobre os vários agentes e os consumidores.
1 – GERADORAS DE ENERGIA ELÉTRICA
O fornecimento da energia está lastreado em contratos com o mercado regulado por meio dos leilões e com o mercado livre com contratos registrados na CCEE. Tanto distribuidoras quanto os consumidores livres tem opções de negociação das sobras e déficits de energia ao final de cada mês. Entretanto, o preço de liquidação das diferenças – PLD, de 11 a 17 de abril está abaixo dos R$ 40,00/MWh e os preços de contrato estão ao redor dos R$ 180,00/MWh no mercado regulado. Estes mecanismos funcionam em períodos normais não num período de exceção onde todos tem sobras e poucos tem déficits.
As geradoras, de qualquer fonte de energia primária, tem parte de sua energia comprometida no médio e longo prazo nos leilões de energia promovido pelo MME, ambiente de contratação regulada – ACR, para as distribuidoras fornecerem ao mercado cativo, bem como em contratos no ambiente de contratação livre – ACL, para os consumidores livres.
No caso das usinas térmicas as mesmas tem custo de disponibilidade acrescidos do custo do combustível quando demandadas. Recebem o custo da disponibilidade independente da energia que geram. Correspondem a segurança do sistema. As bandeiras tarifárias, atualmente em bandeira verde, servem para antecipar custo desta energia, caso seja necessária, que anteriormente era repassado apenas no evento tarifário do ano seguinte.
No caso dos distribuidores de energia elétrica, as sobras são consideradas em favor da modicidade tarifária quando o valor de venda da energia de sobra for maior que o valor regulado e em prejuízo do concessionário em caso contrário.
TRANSMISSORAS DE ENERGIA ELÉTRICA
A receita anual permitida das transmissoras independe da energia transportada. Seu custo reflete os investimentos e os custos de operação e manutenção. Portanto, continuam os mesmos para as transmissoras. Os acessantes da Rede Básica têm montantes de uso, MUST, contratados de uso do sistema de transmissão – CUST, por pontos de acesso, incorrendo em penalidades por excesso por ponto e posto horário bem como por indisponibilidade, cuja obrigação operacional permanece mesmo neste período de exceção.
Qualquer redução nos MUST afetara a receita regulatória estabelecida. Continuam a operar e a disponibilizar seus ativos para operação do ONS, lembrando que as indisponibilidades geram penalidades para as transmissoras. Regulatoriamente tais reduções tem critérios de prazo para serem efetuadas, não podendo afetar as receitas anuais permitidas das transmissoras – RAP no tarifário em curso, de julho de um ano a junho do ano seguinte.
DISTRIBUIDORAS DE ENERGIA ELÉTRICA
No caso das distribuidoras a tarifa é composta por duas parcelas. A parcela A cobre os custos com energia, encargos e custos de transmissão enquanto a Parcela B cobre os custos de operação e manutenção, depreciação e remuneração dos ativos. A Parcela A é não gerenciável e o preço da energia que se paga é o mesmo cobrado do consumidor. Em números inteiros a proporção é de 24% para a Parcela B e 76% para a Parcela A. Não considerados impostos ICMS, PIS/COFINS e Custo de Iluminação Pública – CIP.
Após cada ano tarifário é feita a neutralidade dos encargos setoriais recolhidos para a conta de desenvolvimento energético – CDE, que paga subsídios de baixa renda entre outros. Assim a parcela A é neutra para as distribuidoras em termos, devido aos riscos de planejamento de mercado de compra de energia.
A Parcela B corresponde a soma de todas as tarifas de uso do sistema de distribuição (TUSD) e também independe da quantidade de energia transportada. É pela disponibilidade do fio. As redes de distribuição são dimensionadas pela demanda contratada pelas unidades consumidoras para atendimento em tensão primária (alta tensão) e por estimativa para atendimento em tensão secundária (baixa tensão).
A redução da demanda, devido a um menor consumo de energia, se reflete apenas na diminuição das perdas elétricas técnicas, que por sua vez são consideradas na Parcela A e não na Parcela B que cobre os custos da distribuição, ou seja, seus custos operacionais permanecem inalterados.
CONSUMIDORES DE ENERGIA
No caso do mercado livre, disponível a grandes consumidores, hoje muito afetados pelo isolamento social, continuam a pagar pelos contratos tanto de energia quanto de uso do sistema. Quanto há sobra de energia pode-se usar do recurso de venda, hoje com preço certamente inferior aos que foram adquiridos.
No caso dos consumidores cativos de alta tensão, tem a opção de pagar apenas pela energia consumida, mas devem pagar pela TUSD contratada. Para os consumidores de baixa tensão pagam pelo que for consumido com a característica de tarifa monômia de que o preço da energia inclui o custo da TUSD. Para o Grupo A (consumidores atendidos em alta tensão) existem prazos regulatórios tanto para redução quanto para aumento de demanda, o que não ocorre para os consumidores do Grupo B (consumidores atendidos em baixa tensão).
Houvesse sido aplicada a tarifa binômia para o Grupo B os efeitos de energia e demanda estariam separados e muito mais fáceis de serem administrados inclusive reduzindo as discussões acerca da introdução da geração distribuída, pelo uso das redes de distribuição bem como dos recolhimentos dos encargos setoriais tão necessários neste momento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Várias são as consequências deste isolamento no mercado de energia elétrica. O desemprego, redução da atividade de comércio, serviços e indústrias certamente afetarão fortemente o seu consumo. Entre elas aumento da inadimplência, um provável aumento das perdas comerciais (não técnicas).
Tanto agentes como consumidores serão fortemente afetados não somente neste período, mas também na retomada das atividades comerciais e industriais. Nossa história mostra que após o racionamento em 2001, o consumo levou mais de 3 anos para retomar o patamar anterior devido a mudança de hábitos da população. Neste evento o comportamento pós quarentena nunca mais será o mesmo em muitos aspectos de nossas vidas.
A qualidade do serviço de energia elétrica passa a ter outra percepção, assim como em outros serviços públicos, tal como as telecomunicações. Tem-se mais tempo para observar a infraestrutura daquilo que move o bem estar da população. Tal qualidade no setor elétrico está diretamente ligada aos investimentos realizados nos últimos anos e a adoção de melhores práticas operacionais, acompanhando o balizamento do regulador em prol da modicidade tarifária e da qualidade do serviço.
A regulação mudou o conceito de tarifa por custo, risco do consumidor, vigente até 1993 (Lei 8.631) para um modelo de tarifa por preço onde o risco de mercado é do concessionário. No momento em que vivemos não há uma variação de mercado por vontade própria de consumo e sim uma imposição de governo de isolamento social e fechamento da grande maioria das atividades com exceção das atividades essenciais.
Assim como no caso do racionamento de 2001 enfrentamos efeito semelhante de alteração nas condições de mercado por determinação superior que independe da vontade do próprio mercado. É o caso de se analisar sob a ótica do “Fato do Príncipe”.
Hoje as medidas para proteção dos consumidores baixa renda, impossibilidade de corte por não pagamento, etc. além da consequente redução dos recursos da conta CDE pela redução do consumo em um momento que mais recursos serão necessários nesta conta. O orçamento de 2020 da conta CDE é da ordem de R$ 22 bilhões.
Uma análise do saldo nas contas de alguns encargos não utilizados poderia compor um montante de suporte financeiro para este período, resguardado o direito ao retorno às suas origens pós cessados os efeitos da pandemia.
Os mecanismos de negociações de sobras e déficits poderiam ser alterados criando-se uma conta corrente em energia e preços de modo que a compensação seria a medida que o mercado fosse reagindo e os saldos financeiros compensados de acordo com a reação da economia mantidos os preços ora contratados, corrigidos por um índice oficial.
Terminado o racionamento de 2001 os prejuízos decorrentes foram cobertos pela tarifa nos anos seguintes, o que parece ser a indicação deste período por que estamos passando. Ou paga o tesouro ou pagamos nós consumidores. Ações mitigadoras que apenas adiem compromissos um dia terão que ser pagas. O que precisamos é de medidas estruturais que reduzam efeitos de eventos extraordinários como este por que passamos e exemplos recentes como o racionamento de 2001 e o risco hidrológico de 2014.
*Manoel Negrisoli é consultor de Assuntos Regulatórios da Mercados de Energia Consultoria Ltda