Um grande salto na demanda
Preços até 22,5% menores em relação ao mercado cativo atraem inúmeros pequenos e médios consumidores.
Aos 20 anos de existência, o mercado livre de energia brasileiro experimenta seu maior salto de demanda: uma expansão de 74% em 2016, quando o ambiente de negociação da Câmara de Compensação de Energia Elétrica (CCEE) registrou um avanço de 3,24 mil agentes registrados para 5,65 mil. Só nos primeiros dois meses de 2017 o aumento foi de mais 7%. O mercado livre já está próximo de atingir o seu potencial dentro da atual faixa de elegibilidade, estabelecida entre 0,5 megawatt hora (MWh) e 3 mil MWh. Seu volume de negociação atingiu a fatia de 27% do total de 61,5 mil MW médios consumidos no país em 2016.
E a projeção é que o teto para essa faixa de demanda fique entre 32% e 34% do consumo nacional. Por essa razão, é recorrente no setor o tema da liberalização do mercado como um todo com total liberdade de escolha do consumidor. O mercado hoje prevê que essa liberalização seja implementada em etapas e gradualmente para aguardar a vigência dos contratos de longo prazo do mercado cativo.
“A maior fatia das migrações do mercado cativo para o livre em 2016 ocorreu para o ambiente de energia incentivada (fontes alternativas como eólica, solar, biomassa), na qual o consumidor tem desconto médio de 50% em relação ao valor da energia no mercado”, afirma Solange David, vice-presidente do conselho de administração da CCEE. A migração de contratos do mercado cativo para o livre foi exponencial nos setores de comércio e serviços, sobretudo de médios e pequenos consumidores como redes varejistas médias, hospitais, hotéis, universidades, shopping centers. Devido à crise econômica, os consumidores buscaram, depois dos fortes ajustes com pessoal e descontinuidade de parte das operações, nova rodada de corte de custos, e a energia foi um dos itens que apresentaram mais potencial de economia no mercado livre.
A Panasonic de Manaus, por exemplo, uma montadora de eletroeletrônicos da Zona Franca, em dezembro de 2016 conseguiu uma economia de 22% na sua conta de luz, após a migração para o mercado livre, e prevê um corte médio de 15% (períodos menos favoráveis) a 20% nos próximos três anos de seu contrato. A empresa esperava por condições de migração, que não eram possíveis em Manaus, depois que o mercado cativo apresentou aumentos “inesperados” no preço da energia, sobretudo a partir de 2015, quando o governo, depois de ter represado por anos os preços, decidiu adotar o “realismo tarifário”. Segundo Cesar Augusto Ueda, gerente-geral da Panasonic de Manaus, nenhum planejamento “dá conta de uma situação dessas” de aumento de 42,55% na tarifa de alta tensão em Manaus, na época.
Segundo Cristopher Vlavianos, presidente da Comerc Energia, uma das líderes em gestão de operações para terceiros no país, sua empresa conseguiu uma economia de R$ 1,2 bilhão na conta de energia para as 1.078 unidades de clientes sob sua gestão em 2016, o que representou um recuo médio de 22,55% na conta em comparação com as tarifas do mercado cativo. “Tivemos um aumento de 150% para 750 clientes em carteira em 2016 e chegamos a um volume administrado de 2.850 MW médios, montante 21% superior a 2015”, resume Vlavianos, lembrando que o processo de migração leva pelo menos seis meses e que a maioria dos que migraram em 2016 decidiram pela troca em 2015. De qualquer forma, as restrições hidrológicas têm provocado volatilidade do preço no mercado livre, o que obriga as empresas a adotarem a gestão de risco e contratação de hedge, levando o mercado de consultoria a crescer a um ritmo até maior que a comercialização de energia em si. “Nosso negócio, que estava numa faixa de receita de 90% na trading de energia, a Compass, e 10% da consultoria e gestão para migração e contratos, a EIG, está mudando. Em fevereiro, foi a última boa oportunidade para bons preços no mercado livre. Em março, com o fim da estação chuvosa, que foi insuficiente, as cotações subiram bem”, explica Marcelo Parodi, sócio da Compass Energia.
O apetite pela migração para o mercado livre arrefeceu em março. Segundo Claudio Monteiro, diretor-presidente da Matrix Energia (que comercializa 800 MW médios), a tendência é de alta do spread na cotação da energia no mercado livre sobre o cativo em decorrência do nível insatisfatório dos reservatórios das usinas. “Os grandes consumidores do mercado livre estão comprados no longo prazo, então quem sofre mais são aqueles de contratos de prazos menores ou quem, na urgência, precisa ir ao mercado spot. A luz amarela está acessa no setor.” Os preços só devem mudar de direção no próximo período de chuvas.
Até dezembro de 2017, estão previstas a entrada de quatro turbinas da hidrelétrica de Belo Monte (mais 2.444 MW), outras três da térmica de Mauá (591 MW), além da entrada de seis restantes da hidrelétrica de Santo Antônio (417,5 MW) e de outras unidades eólicas e solares, que podem perfazer um aumento de 5.300 MW de carga nova. Isso estaria disponível no sistema interligado se algumas obras de transmissão, como da Abengoa, responsável pelo escoamento da energia de Belo Monte, não estivessem paralisadas desde 2015, enquanto o “imbrôglio” da conta de compensação às transmissoras alcança R$ 62 bilhões. Em paralelo, outro cipoal de liminares compromete a liquidação de operações no mercado livre na CCEE, atingindo cerca de 73% dos contratos. O ambiente de negócios é “preocupante” com a inadimplência. Muitos credores na CCEE estão em uma corrida de negociações bilaterais diretas com clientes. “O que não é bom para um mercado que tende a se desenvolver a ponto de atrair fundos de investimentos para operar nesses derivativos de energia”, diz Fábio Cuberos, gerente de regulação da Safira Energia. “Felizmente, esse time que o governo tem na área de energia é muito competente e tem sensibilidade para equacionar essas distorções com conversas sobre regras claras e transparentes com o setor. A empresa comercializa entre 350 e 400 MW no mercado livre.
Para Reinaldo Ribas, gerente da Delta Energia, as questões da insegurança jurídica e de estabilidade do suprimento de energia podem facilitar a discussão de mudança estrutural do modelo do setor energético tanto no Legislativo como no Executivo, especialmente nas regras a longo prazo para a privatização de novas usinas, como pretende fazer o governo. A Companhia de Energia de Goiás (Celg) foi a última a ser vendida e os investidores potenciais estão exigindo um mercado mais livre para operar no país. “A energia é uma commodity como as outras e a confiança do mercado para operar livremente, como ocorreu no setor de telecomunicações, que opera em pleno regime concorrencial, depende de um cenário e de regras de longo prazo”, afirma Ribas. O mercado livre deve se aproximar do mercado financeiro, no sentido de que os papéis de energia, ou seja, os derivativos, atraiam mais fundos de investimentos.
“Nós, aqui na CCEE, apesar dos contenciosos do momento, não queremos ficar alijados dessa discussão de liberalização do mercado de energia, porque é o passo de evolução natural deste setor, como acontece no resto do mundo. É claro que essa migração terá que ter bases mais sólidas e compartilhamento de todos os ônus, assim como dos bônus. Coisa que parte dos agentes não absorve bem hoje”, diz Solange David, da CCEE. A crise econômica ajudou mais do que prejudicou o mercado livre de energia pelo volume que assumiu a migração de contratos do cativo. Mas as janelas de oportunidades socioeconômicas e políticas para avançar na construção de um novo modelo para o setor de energia serão nas eleições de 2018. “O fato é que o efeito demonstração vai se multiplicando, quando consumidores de médio e pequeno portes vão sinalizando no mercado que há uma forma de economizar entre 15% e 20% na troca de contratos e na forma de administrar sua conta de energia. Isso favorece a adesão maior da sociedade até a pressão do mercado de baixa tensão (residencial), que também tem buscado na energia solar uma maneira de passar a ser também ofertante de sobras de energia, e assim fica fortalecida a ideia de liberação do mercado”, afirma Cuberos.